Prefácio de A Bastarda de Violette Leduc
SIMONE DE BEAUVOIR
Quando, no início de 1945, comecei a ler o manuscrito de Violette Leduc — “Minha mãe nunca me deu a mão” — fiquei imediatamente arrebatada: um temperamento, um estilo. Camus logo acolheu L’Asphyxie (A Asfixia) em sua coleção “Espoir”. Genet, Jouhandeau, Sartre saudaram o nascimento de uma escritora. Seu talento se confirmou nos livros que se seguiram. Críticos exigentes o reconheceram abertamente. O público não reagiu. Malgrado um considerável sucesso de crítica, Violette Leduc permaneceu desconhecida.
Dizem que não existe mais autor desconhecido. Qualquer um ou quase isso consegue editar. Pudera, a mediocridade pulula. A boa semente é abafada pelo joio. O êxito depende, na maior parte do tempo, de um golpe de sorte. Entretanto, a própria má sorte tem as suas razões. Violette Leduc não quer agradar. Não agrada e até assusta. Os títulos de seus livros — L’ Asphyxie (A Asfixia), L’Affamée, (A Faminta), Ravages (Destroços) — não são divertidos. Ao folheá-los, entrevemos um mundo pleno de ruído e raiva, onde o amor muitas vezes traz o nome de ódio, onde a paixão de viver se expande em gritos de desespero. Um mundo devastado pela solidão e que de longe parece árido. Não o é, porém. “Sou um deserto que monologa”, me escreveu um dia Violette Leduc. Nos desertos encontrei belezas incontáveis. Quem quer que nos fale do fundo de sua solidão fala de nós. O homem mais mundano ou o mais militante tem seus recônditos onde ninguém se aventura, nem mesmo ele, mas que lá estão: a noite da infância, os fracassos, as renúncias, a brusca emoção de uma nuvem no céu. Surpreender uma paisagem, um ser, tais como existem em nossa ausência: sonho impossível que todos nós acariciamos. Se lemos A Bastarda, o sonho se realiza, ou quase. Uma mulher desce ao mais secreto de si mesma e se revela com uma sinceridade intrépida, como se não houvesse ninguém para escutá-la.
“Meu caso não é único”, diz Violette Leduc, começando esta narrativa. Não, mas é singular e significativo. Ele demonstra, com excepcional clareza, que uma vida é a retomada de um destino por uma liberdade.
Desde as primeiras páginas, a autora nos esmaga sob o peso das fatalidades que a talharam. Durante toda a infância, a mãe lhe insuflou um irremediável sentimento de culpa, culpa de ter nascido, de ter saúde frágil, de custar dinheiro, de ser mulher e fadada aos males da condição feminina. Viu seu reflexo nos dois olhos azuis e duros: um erro vivo. Sua avó, com ternura, preservou-a da destruição total. Graças a ela, Violette Leduc pôde salvaguardar uma vitalidade e um fundo de equilíbrio que, nos piores momentos de sua história, a impediram de soçobrar. Mas o papel do “anjo Fidéline” era apenas secundário, e ela morreu cedo. O outro se encarnava na mãe de olhar de aço. Esmagada por ela a criança quis se anular totalmente. Idolatrou-a, gravou em si mesma a sua lei: fugir dos homens. Votou-se a servi-la e lhe ofereceu o seu futuro. A mãe se casou. A menininha se abalou com essa traição. Daí em diante, teve medo de todas as consciências, porque detinham o poder de transformá-la em monstro, de todas as presenças porque arriscavam a se desmanchar em ausência. Refugiou-se em si mesma. Por angústia, por decepção, por rancor, escolheu o narcisismo, o egocentrismo, a solidão.
Violette Leduc
“Minha feiúra me conservará isolada até a morte”, escreveu Violette Leduc. Essa interpretação não me satisfaz. A mulher que A Bastarda retrata interessa a modistas, grandes costureiros — Lelong, Fath — a tal ponto que eles se comprazem em lhe oferecer suas mais audaciosas criações. Inspira uma paixão em Isabelle. Em Hermine, um amor ardente que dura anos. Em Gabriel, sentimentos bastante violentos que o levam a se casar com ela. Em Maurice Sachs, uma firme simpatia. Seu “nariz grande” não desencoraja a camaradagem nem a amizade. Se algumas vezes ela faz rir, não é por causa dele. Em sua roupa, no penteado, em sua fisionomia, há qualquer coisa de provocante e insólito. A zombaria busca afirmação. Sua feiúra não comandou seu destino, mas o simbolizou. Ela procurou no espelho razões para ter pena de si própria.
Porque, ao sair da adolescência, achou-se presa em uma máquina infernal. Essa solidão da qual fez seu quinhão, ela a detesta, e porque a detesta, nela se chafurda. Nem eremita, nem exilada, sua desgraça é não conhecer com ninguém uma relação de reciprocidade: ou o outro é para ela um objeto, ou ela se faz objeto para ele. Nos diálogos que escreve transparece sua impossibilidade de se comunicar. Os interlocutores falam um junto ao outro e não conversam; cada qual tem uma linguagem própria, não se compreendem. Mesmo no amor, sobretudo no amor, a troca é impossível, pois Violette Leduc não aceita uma dualidade em que a ameaça da separação esteja latente. Toda ruptura ressuscita de maneira intolerável o drama de seus quatorze anos: o casamento de sua mãe. “Não quero que me deixem”: é o leitmotiv de Ravages. É preciso, pois, que o casal seja um só ser. Em alguns momentos, Violette Leduc pretende se aniquilar, faz o jogo do masoquismo. Tem, entretanto, demasiado vigor e lucidez para não se manter nele por muito tempo. Ela é quem devorará o ser amado.
Ciumenta, exclusivista, agüenta com dificuldade a afeição de Hermine pela família, as relações de Gabriel com a mãe e a irmã, suas amizades de homem. Exige que sua amiga, terminado o dia de trabalho, lhe consagre todos os instantes. Hermine cozinha e costura para ela, escuta-lhe as lamentações, se afoga com ela no prazer e cede a todos os seus caprichos. Hermine nada reclama, salvo, à noite, o direito de dormir. Insone, Violette se insurge contra essa deserção. Mais tarde, também proíbe Gabriel de dormir. “Odeio os que dormem.” Sacode-os, desperta-os e os obriga, através de lágrimas ou de carinhos, a manter os olhos abertos. Menos dócil que Hermine, Gabriel pretende exercer sua profissão e dispor do tempo a seu bel-prazer. Cada manhã, quando quer partir, Violette tenta por todos os meios reconduzi-lo ao leito. Ela atribui essa tirania a suas “insaciáveis entranhas”. Na verdade, deseja bem outra coisa que a volúpia: a posse. Quando faz Gabriel gozar, quando o recebe nela, ele lhe pertence, a união se realiza. Quando ele sai de seus braços, é novamente este inimigo: um outro.
“Miragens idênticas da presença e da ausência”. A ausência é um suplício: a angustiante espera de uma presença. A presença é um intermédio entre duas ausências, um martírio. Violette Leduc detesta seus carrascos. Eles têm — como todo mundo — uma convivência consigo mesmos que a exclui. E também certas qualidades de que ela é desprovida e por isso se sente lesada. Inveja a boa saúde de Hermine, seu equilíbrio, sua atividade, sua alegria. Sente inveja de Gabriel porque é homem. Não pode destruir seus privilégios a não ser destruindo completamente sua pessoa. Mesmo assim, ela tenta.
“Você quer me destruir”, diz Gabriel. Sim. A fim de suprimir o que os diferencia e para se vingar. “Eu me vingava de sua presença perfeita demais”, dizia a respeito de Hermine. Quando um, depois o outro, deixam-na para sempre, ela se desespera; entretanto atinge seu objetivo. Secretamente desejava quebrar essa ligação, esse casamento. Pelo prazer do fracasso. Porque visa a sua própria destruição. É “o louva-a-deus devorando a si mesmo”. Mas tem bastante saúde, para trabalhar apenas para sua ruína. Na realidade, ela perde a fim de perder e ganhar ao mesmo tempo. Suas rupturas são reconquistas próprias.
Entre tempestades e bonanças, reserva sempre — esta é sua força — o cuidado de se preservar. Nunca se entrega totalmente. Após algumas semanas ardentes, foge logo da paixão de Isabelle. No início de sua vida em comum com Hermine, luta para continuar a trabalhar e prover suas necessidades. Vencida pelo médico, por sua mãe e Hermine, a dependência lhe pesa. Foge disso graças à camaradagem ambígua que entretém com Gabriel e que durante longo tempo permanece clandestina. Casando-se com ele, contesta esse laço consumindo-se de desejo por Maurice Sachs. Quando Sachs, tendo partido como trabalhador livre para Hamburgo, quer voltar à aldeia onde tinham passado alguns meses juntos, ela se recusa a ajudá-lo. Carregando com a força de seus pulsos malas cheias de manteiga e de pernis, amontoando dinheiro, exausta e vitoriosa, conhece a embriaguez de se superar. Sachs perturbaria o universo no qual ela reina, rígida e altiva como um cipreste.
O próximo sempre a frustra, fere, humilha. Quando luta com o mundo, sem socorro, quando trabalha e tem êxito, a alegria transporta-a. Essa choramingas é também a viajante que no Trésors à Prendre percorre a França, mochila às costas, inebriada por suas descobertas e pela própria energia. A mulher que se basta: é sob essa imagem que Violette Leduc se satisfaz. “Eu atingia o extremo de meus esforços, enfim, eu existia.”
Mas ela precisa amar. Tem necessidade de alguém a quem dedicar seus enlevos, suas tristezas, seus entusiasmos. O ideal seria consagrar-se a um ser que não a embarace com sua presença, a quem possa dar tudo sem que ele lhe tire nada. Assim amou Fidéline — “Minha pequena rainha que não envelheceu” —, maravilhosamente embalsamada em sua memória. E Isabelle, que se transformou, no fundo do passado, em um ídolo fascinante. Invoca-as, acalenta-se com a imagem delas, prosterna-se a seus pés. Por Hermine ausente e já perdida, seu coração enlouquece. Sente uma paixão repentina por Maurice Sachs e, mais tarde, por dois outros homossexuais. O obstáculo que a separa deles é tão intransponível quanto um ano-luz. Na companhia deles “se inflama no braseiro do impossível”. Há voluptuosidade em um desejo insatisfeito quando este não contém esperança alguma. A mulher que em L’Affamée Violette Leduc denomina Madame não deixa de ser menos inacessível. Em La vieille fille et le mort (A Solteirona e o Defunto), levou ao paroxismo o fantasma de um amor sem correspondência, onde o outro seria reduzido à passividade das coisas. A Srta. Clarisse, solteirona de cinqüenta anos — não por falta de interesse dos homens, mas porque os desdenhou — encontra uma tarde, em um café junto à sua mercearia, um desconhecido morto. Cobre-o de cuidados e ternura sem que ele atrapalhe suas expansões, fala-lhe e inventa suas respostas. A ilusão, porém, se dissipa, pois que ele nada recebeu, ela não deu nada. Não achou conforto nele e se reencontra só diante de um cadáver. Os amores a distância maltratam tanto Violette Leduc quanto os amores compartilhados.
“Jamais você estará satisfeita”, lhe diz Hermine. Hermine mata-a esmagando-a de carinhos, e Gabriel, se recusando. A presença perturba-a, a ausência arrasa-a. A chave dessa maldição, ela nos entrega: “Vim ao mundo, fiz o juramento de possuir a paixão do impossível.” Essa paixão possuiu-a no dia em que, traída pela mãe, refugiou-se junto ao fantasma do pai desconhecido. Esse pai tinha existido, e era um mito. Penetrando em seu universo, penetrou em uma lenda. Escolheu o imaginário, que é uma das faces do impossível. Ele tinha sido rico e refinado. Ela ressuscitou seus gostos, sem esperança de satisfazê-los. Entre os vinte e os trinta anos, cobiçou desvairadamente o luxo de Paris: móveis, vestidos, jóias, belos carros. Mas não esboçou o menor gesto para obtê-los: “O que eu queria? Não fazer nada e possuir tudo.” O sonho da grandeza contava mais que a própria grandeza. Ela se alimenta de símbolos. Transfigura os instantes com ritos: o aperitivo tomado no subsolo com Hermine, o champagne bebido com a mãe pertencem a uma vida fictícia. Ela se mascara quando enfia, ao som de tambores irreais, o costume colante de Schiaparelli, e seu passeio nos grandes bulevares é uma paródia.
Essas tapeações, entretanto, não a satisfazem, pois conservou de sua infância camponesa a necessidade de coisas sólidas nas mãos, de sentir a terra sob os pés, de realizar atos de verdade. Fabricar a realidade com o imaginário é apanágio dos artistas e dos escritores. Ela se encaminhará em direção a essa saída.
Em suas relações com o próximo assumia apenas seu destino. Mas inventa-lhe um sentido imprevisto quando se orienta para a literatura. Tudo começou no dia em que entrou em uma livraria e pediu um livro de Jules Romains. Em sua narrativa, não valoriza a importância desse fato de que, na hora, não suspeitou evidentemente das conseqüências. Um leitor desatento verá em sua história nada mais que uma série de acasos. Trata-se, na verdade, de uma escolha que se mantém e se renova durante cerca de quinze anos antes de chegar a uma obra.
Enquanto viveu à sombra de sua mãe, Violette Leduc desprezou os livros. Preferia roubar couve atrás de uma charrete, colher verduras para os coelhos, conversar, viver. No dia em que se voltou para o pai, os livros — que ele amara tanto — fascinaram-na. Sólidos, brilhantes, eles continham, sob a bela capa lustrosa, mundos onde o impossível se torna possível. Comprou e devorou Mort de quelqu’ un (Morte de um alguém). Romains. Duhamel. Gide. Não mais os largará. Quando se decide a trabalhar, põe um anúncio na Bibliographie de la France. Entra numa editora, redige notas sociais. Não ousa ainda sonhar em escrever livros, mas se nutre de rostos e de nomes famosos. Após seu rompimento com Hermine, vai trabalhar com uma empresária de cinema. Lê as sinopses, propõe seus desenvolvimentos. Assim desviou o curso de sua existência e provocou a chance que a fez encontrar Maurice Sachs. Ele se interessa por ela, aprecia suas cartas, aconselha-a a escrever. Ela principia por novelas e reportagens que envia a uma revista feminina. Mais tarde, cansado com a repetição de suas recordações da infância, ele lhe dirá: escreva-as. Surgirá L’Asphyxie.
Súbito, ela compreendeu que a criação literária poderia ser-lhe uma salvação. “Escreverei, abrirei os braços, abraçarei as árvores frutíferas, vou dá-las à minha folha de papel.” Falar a um morto, a surdos, a coisas, é um jogo duro. O leitor cumpre a síntese impossível da ausência e da presença. “O mês de agosto hoje, leitor, é uma rosácea de calor. Eu a ofereço a você, de presente.” Ele recebe tal presente sem alterar a solidão do autor. Escuta seu monólogo, não o responde, mas o justifica.
É preciso entretanto ter qualquer coisa a lhe dizer. Enamorada do impossível, Violette Leduc não perdeu, contudo, o contato com o mundo. Ao contrário, abraça-o para preencher sua solidão. Sua situação singular protege-a contra as visões pré-fabricadas. Sacudida do fracasso à nostalgia, nada considera pronto. Incansavelmente, interroga e recria com palavras o que descobriu. Tinha tanto a dizer que seu ouvinte fatigado lhe pôs uma caneta nas mãos.
Obcecada por si mesma, todas as suas obras — salvo Les Boutons Dorés (Os Botões Dourados) — são mais ou menos autobiográficas: lembranças, diário de um amor, ou antes de uma ausência; diário de uma viagem; romance que transpõe um período de sua vida; longa novela que põe em cena seus fantasmas; enfim, A Bastarda, que retoma e ultrapassa seus livros anteriores.
A riqueza de suas narrativas provém mais da ardente intensidade de sua memória que das circunstâncias. A cada momento ela, toda inteira, lá está através da espessura dos anos. Cada mulher amada ressuscita Isabelle em quem ressuscitava uma jovem mãe idolatrada. O avental azul de Fidéline ilumina todos os céus de verão. Às vezes a autora pula para o presente, nos convida a sentar a seu lado sobre as folhas de pinheiro. Assim anula o tempo, o passado toma as cores da hora que está soando. Uma colegial de cinqüenta e cinco anos traça palavras em um caderno. Também nos arrasta em delírios quando suas lembranças não são bastantes para lhe aclarar as emoções; então conjura a ausência através de fantasmagorias líricas e violentas. A vida vivida envolve a vida sonhada que transparece em filigrana nas narrativas mais despojadas.
Sua principal heroína é ela. Mas seus protagonistas existem intensamente. “Pontilhismo atroz do sentimento.” Uma entonação da voz, um franzir de sobrancelhas, um silêncio, um suspiro, tudo é promessa ou recusa exacerbada, tudo adquire um relevo dramático para aquela que é apaixonadamente engajada em sua relação com os outros. A “atroz” preocupação que tem por seus menores gestos é sua felicidade de escritora. Faz com que vivam para nós em sua opacidade inquietante e seus detalhes minuciosos. A mãe, provocante e violenta, imperiosa e cúmplice, Fidéline, Isabelle, Hermine, Gabriel, Maurice Sachs, tão espantosos como nos seus próprios livros. Impossível esquecê-los.
Maurice Sachs
Porque “nunca está satisfeita”, permanece disponível, todo encontro pode aplacar sua fome ou pelo menos distraí-la. A todos com quem cruza concede uma profunda atenção. Desmascara as tragédias, as farsas que se escondem sob aparências banais. Em algumas páginas, em algumas linhas, anima os personagens que atraíram sua curiosidade ou amizade: a velha costureira albigense, que vestiu a mãe de Toulouse-Lautrec; o eremita cego de um olho, de Beaumes-de-Venise; Fernand, o “abatedor”, que sorrateiramente abate bois e carneiros, uma cartola à cabeça, uma rosa entre os dentes. Comoventes, extraordinários, eles nos prendem como a prenderam.
Interessa-se pelas pessoas. Gosta das coisas. Sartre narra em As Palavras que, embebido pelo Littré, estas lhe apareciam como precárias encarnações do nome. Para Violette Leduc, ao contrário, a linguagem está nelas, e o escritor é que corre o risco de traí-las. “Não assassine esse calor no alto de uma árvore. As coisas falam sem você, contenha-se, sua voz poderá abafá-las.” “A roseira se verga sob a embriaguez das rosas: que deseja você, fazê-la cantar?” Entretanto, decide escrever e captar seus murmúrios: “Trarei o coração de cada coisa à superfície”. Quando se sente arrasada pela ausência, refugia-se perto delas, elas são sólidas, reais, e têm uma voz. Enamora-se de objetos estranhos. Certa vez, trouxe do Midi cento e vinte quilos de pedras da cor da aurora, onde fósseis tinham deixado sua marca; outra vez, trouxe pedaços de madeira de cinzentos requintados, de formatos originais. Seus companheiros favoritos, porém, são os objetos familiares: uma caixa de fósforos, um fogareiro. Desfruta do calor, da doçura, de um sapato de criança. Em seu velho casaco de pele de coelho, respira ternamente o perfume de seu despojamento. Encontra proteção em uma cadeira de igreja, em um relógio: “Tomei em meus braços o encosto. Toquei a madeira encerada. Ela é gentil com minha face.” “Os relógios me consolam. O pêndulo vai e vem, alheio à felicidade, alheio à desgraça.” Na noite seguinte a seu aborto, pensou que morria e apertava amorosamente a pêra do comutador elétrico suspenso acima de seu leito. “Não me abandone, pequena e querida pêra. Você é bochechuda, estou me apagando com uma face na palma de minha mão, uma face envernizada que reanimo.” Como sabe amá-los, ela faz com que os vejamos. Ninguém antes nos mostrou essas palhetas um pouco apagadas que cintilam incrustadas nos degraus do metrô.
Todos os livros de Violette Leduc poderiam se chamar L’ Asphyxie. Ela se sente asfixiada junto a Hermine, no pavilhão do subúrbio, e mais tarde no reduto de Gabriel. Isso é o símbolo de um confinamento mais profundo, ela se estiola em sua própria pele. Mas, em certos momentos, sua saúde vigorosa explode e então ela rasga os anteparos, liberta o horizonte, escapa, se dá à natureza e as estradas se desenrolam a seus pés. Vadiar, fazer longas caminhadas. Nem o grandioso, nem o extraordinário a atraem. Compraz-se na Île-de-France, na Normandia: prados, sítios, lavouras, uma terra trabalhada pelo homem com suas chácaras, pomares, casas, animais. Muitas vezes, o vento, a tempestade, a noite, um céu de fogo dramatizam essa tranqüilidade. Violette Leduc pinta paisagens tormentosas que se assemelham às de Van Gogh. “As árvores têm suas crises de desespero.” Mas sabe também descrever a paz dos outonos, a tímida primavera, o silêncio de um caminho de sulcos. Sua simplicidade, às vezes um tanto preciosa, lembra Jules Renard: “A porca é muito nua, a ovelha vestida demais.” Entretanto, é com uma arte toda pessoal que colore os ruídos, ou torna visível “o grito brilhante da cotovia”. O abstrato fica tangível para ela quando evoca “a jovialidade das umbelíferas… o perfume de desespero da serragem fresca… o vapor místico das lavandas em flor”. Nada é forçado em suas anotações. Com espontaneidade, o campo fala dos homens que o cultivam e o habitam. Através dele, Violette Leduc se reconcilia com eles. Vai flanando à vontade pelas aldeias, abertas e cercadas, fechadas em si mesmas, mas onde cada habitante conhece o calor de uma relação com todos. Nos botequins, os camponeses, os carroceiros não a intimidam. Brinda com eles, mantém-se alegre e confiante, conquista-lhes a amizade. “O que amo de todo o coração? O campo, os bosques, as florestas… Meu lugar é nele, entre eles…”
Todo escritor que fala sobre si sonha com a sinceridade: cada um com a sua, que não é igual a nenhuma outra. Não conheço sinceridade mais íntegra que a de Violette Leduc. Culpada, culpada, culpada: a voz da mãe ainda ressoa nela. Um juiz misterioso encurrala-a. Apesar disso, graças a isso, ninguém é capaz de intimidá-la. Jamais os erros que lhe imputaremos serão tão graves quanto os que lhe atribuem invisíveis perseguidores. Mostra-nos todas as peças do processo a fim de que a livremos do mal que não cometeu.
Em seus livros, o erotismo ocupa grande espaço, mas não de modo gratuito nem como provocação. Ela não nasceu de um casal, mas de dois sexos. Diante das lengalengas da mãe, ficou se conhecendo de início como pertencente a um sexo maldito, ameaçado pelos machos. Adolescente enclausurada, estagnava-se em um narcisismo enfadonho, quando Isabelle lhe ensinou o prazer. Foi fulminada por essa transfiguração do seu corpo em delícias. Entregue a amores ditos anormais, ela os reivindicou. Outrossim, é solidamente materialista, mesmo usando algumas vezes o nome de Deus entre os nomes que dá à sua solidão. Não procura impor a outro suas idéias ou uma imagem sua. Sua relação com ele é carnal. A presença é o corpo, a comunicação se opera de corpo a corpo. Estimar Fidéline é se meter debaixo de sua saia. Ser rejeitada por Sachs é agüentar seus beijos “abstratos”. O narcisismo se encerra no onanismo. As sensações são a verdade dos sentimentos. Violette Leduc chora, exulta, palpita com seus ovários. Não nos diria nada sobre si se não nos falasse deles. Enxerga os outros através de seus desejos: Hermine e seu ardor tranqüilo; o masoquismo irônico de Gabriel; a pederastia de Sachs. Interessa-se, nos encontros casuais, por todas as pessoas que recriaram por conta própria a sexualidade, como Cataplame, no começo de A Bastarda. O erotismo nela não desemboca em nenhum mistério e não se constrange com banalidades, é contudo a chave privilegiada do mundo, é à sua luz que descobre a cidade e os campos, a espessura das noites, a fragilidade da aurora, a crueldade do badalar dos sinos. Para falar dele, forjou uma linguagem particular sem afetação nem vulgaridade que considero um notável achado. Entretanto, desagradou aos editores. Eles eliminaram de Ravages a descrição de suas noites com Isabelle. As reticências substituem aqui e ali passagens que foram suprimidas. De A Bastarda eles aceitaram tudo. O episódio mais ousado mostra Violette e Hermine deitadas juntas sob os olhos de um voyeur, tudo contado com tal simplicidade que desarma a censura. A audácia discreta de Violette Leduc é uma de suas mais impressionantes qualidades, mas que, sem dúvida, prejudicou-a: escandaliza os puritanos, e o machismo não a aprova.
Em nossos dias, as confissões sexuais são abundantes. Muito mais raro é ver-se um escritor falando francamente sobre o dinheiro. Violette Leduc não esconde a importância que este representa para ela, ele também materializa suas relações com o outro. Quando criança, sonha trabalhar a fim de dá-lo à mãe; rejeitada, zomba dele, furtando-o aqui e ali. Gabriel ergue-a num pedestal ao gastar seu dinheiro com ela, e a deprime quando economiza. Um dos traços que a fascinam em Sachs é a sua prodigalidade. Ela se diverte em pechinchar: é uma revanche sobre os que possuem. Acima de tudo, adora ganhar: assim se afirma, existe. Junta dinheiro apaixonadamente. Desde a infância foi tomada pelo medo de não ter. Mede sua importância pelo maço de notas que espeta sob a saia. Na fraternidade dos botequins da aldeia, chega a pagar, com alegria, as rodadas de bebidas. Mas não esconde que é avarenta: por prudência, por egocentrismo, por ressentimento. “Auxiliar o meu próximo. E me ajudavam quando eu morria de angústia?” Dureza, rapacidade convivem nela com surpreendente boa-fé.
Faz a confissão de outras mesquinharias que habitualmente escondemos com zelo. Numerosos foram os amargurados que furiosamente tiraram benefício da derrota. Seu primeiro cuidado foi, em seguida, esquecer. Violette admite tranqüilamente que a ocupação nazista lhe proporcionou suas chances, que as aproveitou. Não se aborreceu porque a desgraça caiu sobre outras cabeças e não a sua. Contratada por uma revista feminina e convencida de que era uma nulidade, temia o fim da guerra, que faria voltar os “valores” e resultaria na sua expulsão. Não se desculpa nem se acusa, assim era ela. Compreende o porquê e nos faz compreendê-lo.
Mas não minimiza coisa alguma. A maioria dos escritores, quando confessa maus sentimentos, tira os seus espinhos com a própria franqueza. Ela nos obriga a pegá-los, nela, em nós, em sua mordacidade ardente. Permanece cúmplice de suas invejas, de seus rancores, de suas mesquinharias. E com isso toma para si as nossas culpas e nos libera da vergonha: ninguém é monstruoso se todos nós o somos.
Essa audácia lhe provém de sua ingenuidade moral. Raramente se dirige uma reprovação ou delineia alguma defesa. Não se julga, não julga ninguém. Lamenta-se. Irrita-se contra a mãe, contra Hermine, Gabriel, Sachs, não os condena. Algumas vezes se enternece, algumas vezes admira, não se revolta jamais. Sua culpabilidade lhe veio de fora, sem que por isso fosse mais responsável que pela cor de seus cabelos. Tanto o bem quanto o mal são para ela palavras vazias. As coisas que a fizeram sofrer mais — seu rosto “imperdoável”, o casamento de sua mãe — não estão catalogadas como erros. Indiferente se mostra diante do que não a atinge pessoalmente. Chama os alemães de “os inimigos” para demonstrar que essa noção emprestada lhe é exterior. Não é solidária a nenhum lado. Não possui o senso do universal nem do simultâneo. Está ali onde está, com o peso de seu passado sobre os ombros. Não trapaceia jamais, jamais cede às pretensões nem se curva ante as convenções. Sua escrupulosa honestidade tem o valor de um questionamento.
Neste mundo vazio de categorias morais, somente a sensibilidade a conduz. Curada do gosto pelo luxo e mundanismos, coloca-se com decisão do lado dos pobres, dos abandonados. Permanece assim fiel ao despojamento e às alegrias modestas de sua infância e também à sua vida presente, pois que, após os anos triunfantes do mercado negro, viu-se sem um vintém. Sente veneração pela pobreza de Van Gogh, pelo cura d’Ars. Todas as angústias encontram uma ressonância nela: a dos abandonados, dos desgarrados, das crianças sem lar, dos velhos sem filhos, dos vagabundos, dos párias, das lavadeiras de mãos gretadas, das empregadinhas de quinze anos. Desola-se quando — em Trésors à Prendre, antes da guerra da Argélia — assiste à dona de um restaurante se recusar a servir um argelino vendedor de tapetes. Diante da injustiça, toma logo o partido do oprimido, do explorado. São seus irmãos, se reconhece neles. Além do que, as pessoas situadas à margem da sociedade lhe parecem mais verdadeiras que os cidadãos bem colocados que se curvam a funções. Prefere um boteco do campo a um bar elegante. Ao conforto das primeiras classes, um compartimento de terceira que cheira a alho e lilás. Seus ambientes, seus personagens pertencem a esse mundo da gente humilde que a literatura atual, em geral, relega ao silêncio.
Malgrado “as lágrimas e os gritos”, os livros de Violette Leduc são “revigorantes” — ela ama esta palavra — devido ao que chamaria de sua inocência no mal, e porque eles arrancam tantas riquezas da sombra. Quartos sufocantes, corações desolados, as pequenas frases ofegantes nos comprimem a garganta. De repente, uma ventania nos arrebata sob um céu sem fim e a alegria pulsa em nossas veias. O grito da cotovia fulgura acima da planície nua. No fundo do desespero tocamos a paixão de viver, e o ódio não passa de um dos nomes do amor.
A Bastarda acaba no momento em que a autora termina o relato dessa infância que também narra no início deste livro. Assim, o círculo se fecha. O fracasso da relação com o outro levou a essa forma privilegiada de comunicação: uma obra. Gostaria de ter convencido o leitor a nela penetrar: aí encontrará muito mais ainda do que lhe prometi.
Simone de Beauvoir, 1964.