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De facto, Sócrates não escreve, fala. Não escreve, não porque não saiba
escrever. Não é um analfabeto. Esta recusa da escrita é voluntária, consciente,
deliberada. Mas, afinal, que razões terá Sócrates para esta recusa do acto escrito?
Antes de mais, uma primeira razão que tem a ver com o seu tempo: ele vive no
século de Péricles, não o esqueçamos, e os homens desta época não escrevam livros,
falam. Cultivam a palavra, sabem usá-la e dominam os segredos e os mistérios da
linguagem enquanto fala. Por outro lado, nesta Atenas fervilhante do sec. V A.C., a
política era a paixão e tinha-se recentemente “inventado” e vivênciava-se a democracia.
Ora a democracia é, sempre e inevitavelmente, uma cultura da palavra, do discurso, da
fala. Nela impera o logos a palavra, e a forma privilegiada do logos é o
diá-logos álogo, isto é, a palavra que passa entre mim e ti, que vai e
vem de mim para ti e de ti para mim; por esta palavra somos, por esta palavra
comunicamos, discutimos e esta palavra é, enfim, aquilo que nos une, que nos põe em
contacto, que permite a nossa relação e, assim, rompe a solidão a que, de outro modo,
estaríamos condenados. Por isso, nesta cultura e nesta civilização, o homem é palavra,
porque só pela palavra ele é. Não é outra coisa que Aristóteles quer significar quando
afirma “O homem é um animal racional”. De facto, o termo que se traduz por “racional”
é logos e logos significa originariamente em grego a palavra, mas a palavra que se diz,
mas que se sabe porque se diz; a palavra que assenta em razões, logo, a palavra racional. Porém, palavra, mas a
palavra mítica, imaginária, fabulosa, maravilhosa, emocional, logo, a palavra sem
razão.)
Portanto, fala-se e, por isso, é tão importante falar. Os oradores desta época
(dos quais o mais brilhantes é Péricles) não escrevem os seus discursos. Limitam-se a
falar. Apenas falam.
Nesta época, como já anteriormente, só os poetas escrevem. E só mais tarde
aparecem as obras escritas em prosa. Platão iniciará essa tradição.
Mas há outras razões para esta recusa da escrita por parte de Sócrates. É o
próprio Platão que nos dá conta dessas razões no Fedro. De facto, a escrita não é um
substituto à altura do verdadeiro diálogo. Não se interroga um livro, ou um qualquer
texto escrito, como se interroga um interlocutor e a escrita é, afinal, um obstáculo ao
entendimento claro entre as pessoas. O texto escrito pode não ser compreendido ou ser mal entendido.
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No diálogo, se isso acontecer, podemos sempre interrogar o nosso interlocutor sobre o que quer dizer. Também a escrita tem um outro inconveniente: é que a escrita faz-nos crer, a nós e aos outros, sermos sábios, mascara-nos de sábios, falsos sábios á se vê e não sábios disseram e isso não é saber. É um simulacro de saber, tal como a escrita é um simulacro de saber, tal como a escrita é um simulacro – e mau – do diálogo. Por isso, só o diálogo é comunicação autêntica. Assim, Sócrates não escreve. Fala. Vai passeando e falando. Por isso, pode ser confundido com um sofista. Aparentemente, Sócrates comporta-se como um sofista, como um desses sofistas tão em moda. É um tagarela. Um pequeno e feio homenzinho palrador. Fala seja do que for. Fala seja com quem for. Mas não abre uma escola e afirma que nada ensina, porque nada tem a ensinar. Afinal, ele nada sabe. Não é professor. E, por falar, não é pago, não recebe qualquer remuneração. Parece, pois, falar gratuitamente, falar por falar. O que o leva, então, a palrar, a tagarelar? O que o leva a dialogar? Porque fala se, ao que parece, nada tema a dizer? A história é simples e conta-se em poucas palavras. Um belo dia, um amigo de Sócrates, Quero fonte,encontrando-se em Delfos, resolveu fazer esta simplicíssima pergunta ao oráculo: “Quem é o homem mais sábio do meu tempo?” E a resposta foi também simples: “Sócrates”! Quando Sócrates tem conhecimento desta história fica espantado, assombrado, atónito. E é esta simples história que leva Sócrates a sair para a rua e a dialogar. É esta simples história que o leva à filosofia e o torna filósofo. É por causa desta simples história que Sócrates entra na História! Aliás, quando tem conhecimento deste facto, Sócrates já tem mais de 60 anos de idade. É, pois, com essa idade que ele chega à filosofia, é com essa idade que vem para a rua encetar um certo tipo de diálogo com os seus concidadãos. E é esta simples história que leva um homem, que vivera até aos 60 anos de forma pacata e anónima, a não mais passar despercebido, a alvoroçar toda a sua cidade e a inquietar tão profundamente os seus contemporâneos, bem como vinte e quatro séculos de História! “Não parece fácil encontrar, ao longo de toda a História, exemplos de ‘terroristas’ mais eficazes do que homens como Aristóteles, Galileu, Descartes, Marx ou Freud – que nunca pegaram numa arma; que nunca organizaram uma sublevação; que nunca promoveram. De uma forma directa, física, material, nenhuma revolta de
massas.” Por exemplo, Galileu “limitou-se no fundo a
descobrir uma nova forma de pensar: aquilo que hoje dá pelo nome de pensamento
científico.
(...)
Não é de todo visível que o grupo Baader-Meinhof tenha inflectido o rumo da
nossa civilização em qualquer sentido apreciável.
Mas é certo que Sigmund Freud o fez profundamente e talvez para sempre.
(...)
Talvez no fundo, não exista nenhuma forma mais eficaz de Revolução do que o
desenvolvimento sério do projeto de Sócrates: conhece-te a ti próprio.” De facto, quando Sócrates chega à praça pública e começa a dialogar o terror e
o pânico instalam-se, fica tudo em pé de guerra, alvoroçam-se as consciências, o estado
de sítio é generalizado. Prepara-se autenticamente uma revolução.
8 Revoltam-se as
gentes contra Sócrates. Porque, pelo diálogo, ele as tira do seu sossego, da sua
tranquilidade, da sua paz podre e fétida. Quanto a Sócrates contenta-se em dialogar, em
dialogar daquela maneira, em alvoroçar, em inquietar e em esperar que, a seu tempo,
esse diálogo produza os resultados esperados: uma revolução das mentes; uma
revolução do homem, uma revolução no homem. E tudo isto acontece com um homem
que já é velho por causa de uma simples história e por causa de um certo tipo de diálogo
que esse homem inventa.
Mas voltemos, então, à nossa simples história. Ao ter conhecimento das
palavras do oráculo, naturalmente, Sócrates que tem consciência de não ser sábio, quer a
história em pratos limpos. Decide, pois, proceder a um inquérito, realizar uma pesquisa.
Por isso sai para a rua, vem a público e, através do diálogo, tenta encontrar um homem
que seja sábio. É isto que o leva a dialogar. O diálogo constitui-se, pois como método
privilegiado dessa pesquisa. Por isso Sócrates dialoga com qualquer pessoa e sobre
qualquer coisa. Começará por dialogar, preferencialmente, com aqueles que são tidos na
conta de sábios, com aqueles que aos olhos de toda a gente e aos seus próprios olhos se
consideram sábios: os poetas, os políticos, os que se intitulam a si mesmos sábios á que o que é
importante não é o tema ou o conteúdo do diálogo (Sócrates nada sabe e nada ensina), o
que é importante não é aquilo de que se fala, não é o que se fala – isso é meramente um pretexto. O que é importante é a análise e o exame a que se procede aquilo que se diz,
seja o que for o que se diz. Isto é, o diálogo vale por si, como forma universal de busca
e de exame, independentemente do seu conteúdo diverso, mutável, frágil. O que é novo,
então, não é o diálogo. Já se dialogava antes de Sócrates, continuou-se a dialogar
depois. E dialogar qualquer um dialoga. O que é novo é o diálogo socrático. O que é
novo, o que lhe dá a sua força e o seu poder, é o novo modo como Sócrates usa o
diálogo, é o como se processa o diálogo, de forma a servir de instrumento – simples e
acessível a qualquer um – de análise, de exame, de inquérito, de procura, de busca.
Por isso, todos os diálogos socráticos obedecem a um mesmo padrão. Começase
a dialogar a propósito de qualquer tema que o interlocutor sugere ou que o preocupe
no momento. O assunto do diálogo é sempre da responsabilidade do interlocutor.
Quanto a Sócrates, que nada sabe e nada tem a ensinar, limita-se a examinar as
afirmações proferidas. E esse exame assume necessariamente uma forma interrogativa.
Quem nada sabe nada pode afirmar. Quem nada sabe apenas pode perguntar a quem
sabe ou julga saber. Por isso Sócrates apenas interroga e questiona. E é interrogando que
examina as certezas e as verdades de quem sabe ou está convencido que sabe.
Qual é a atitude de todo aquele que acede a dialogar com Sócrates? Ele sabe.
Está convencido que sabe. Ele possui a certeza; aquilo em que acredita, apresenta-o
como verdadeiro. Ele afirma e, com a mesma prontidão com que afirma as suas
certezas, rejeita as “certezas” de outrem.
Ora, para Sócrates isso não basta. Isso não é sequer saber! É apenas e afinal
uma mera opinião (doxa) apresentada como certeza, como verdade, como saber. “Mas
não devemos nós, Eutifron, examinar se ela [a tua opinião] é ou não correcta? Ou
contentar-nos-emos com isto e desistiremos de fazer perguntas a nós próprios e aos
outros, aceitando como verdadeiro tudo aquilo que nos afirmam que é verdade? Não
devemos nós submeter a exame aquilo que nos dizem?” Assim,
questionando o interlocutor, Sócrates submete a exame todas as suas afirmações, todas
as suas certezas. E de afirmação em afirmação o interlocutor de Sócrates chega a uma
tese que é, afinal contraditória com as suas teses iniciais. E ao contradizer-se dá de caras
com a sua própria ignorância, toma consciência de que aquilo que julgava possuir como
saber afinal não é saber. É pseudo-saber, falso saber. Expõe-se, assim, ao ridículo e, ao
mesmo tempo, fica muito irritado com Sócrates, sentindo-se diminuído, escarnecido,
alvo do risco e do gozo socrático e de quantos assistiam à conversa. As suas certezas
transmutaram-se em dúvidas, as suas verdades desmoronaram-se e caíram por terra.
Obviamente que a verdade se traduz na exigência de não-contradição.
Que lhe resta agora? Nada. O vazio.
E ele que entrara para o diálogo certo de si e seguro da verdade, toma
consciência, pelas contradições em que cai, que não sabe o que diz e que deve calar-se
Obrigado a calar-se, reconhece que, afinal, nada saber. É nisto que consiste a ironia
socrática. Por isso, “Sócrates comporta-se como um ‘moscardo’; espicaça as
consciências adormecidas no sono fácil das ideias feitas. Esta atitude tem, para ele, a
consequência de ser detestado.” E a imagem é do próprio Sócrates que tanto se compara a um moscardo,
porque pica, como a uma tremelga que, pelo choque, paralisa a sua presa.
O método de Sócrates, ou a ausência de método, como preferimos, também
agora se revela: “trata-se para Sócrates (...) não de opor uma tese a outras teses, mas de
se constituir como o negativo. (...) A sua finalidade é destruir a certeza e as suas
justificações ilusórias opondo-lhes não uma verdade (...) mas o fracasso, a ausência de
resposta e, a partir daí, a exigência de uma interrogação conduzida e compreendida de
modo diferente. Ele não ensina o que é preciso saber, mas como se deve conduzir-se se
se quer pôr em situação de saber. Ele não reclama uma adesão: propõe uma arrancada.” A sua tarefa é denunciar a falsa sabedoria (incluindo a dos novos mestres
pensadores, os sofistas), consciencializar os outros que nada sabem e pô-los face a face
com a sua própria ignorância. Conduzi-los, assim, a uma outra atitude, a uma nova
atitude, a única que nos pode colocar em posição não de saber mas de poder vir a saber.
O que ele exige é uma conversão. A ciência não é imposta de fora para dentro, pelo
contrário, ela só pode ‘nascer’ de dentro e, então, exteriorizar-se fora. Logo, a ciência
não se aprende nem se ensina; não é um conteúdo que se transmita é, isso sim, uma
construção que cada um tem de realizar por si próprio e em si próprio, exigindo um
esforço pessoal. É, no dizer de Platão, diálogo da alma consigo mesma. Não deixa de
nos vir à mente a célebre afirmação Kantiana: Não se a+rende a filosofia. Aprende-se a
filosofar.
9
É este o grande sentido da ironia socrática e do “conhecer-te a ti mesmo” no frontispício do Templo de Delfos que Sócrates adota como lema ou sentido último da sua investigação filosófica.
A este propósito, seja-me permitido citar um texto algo longo (que assenta
perfeitamente a Sócrates e ao seu trabalho) e do qual gosto muito, porque dá muito que
pensar! “Da lista incontável de mitos com que disfarçamos constantemente a realidade
das coisas, faz com certeza parte, de uma forma destacada, a convicção de que
sabemos pensar, a convicção de sermos capazes de compreender”, a convicção de que
nos conhecemos a nós próprios. Ora “imagine que um dia alguém se aproximava de si
na rua e em vez de lhe perguntar polidamente as horas, ou aonde é que ficava a rua tal,
lhe perguntava, com a maior naturalidade - Importa-se de me dizer se sabe pensar?
Imagine, com a maior nitidez que puder, que essa pessoa lhe pedia que a
ajudasse a pensar, exatamente com a mesma naturalidade com que lhe pediria lume ou
troco de vinte escudos.
Imagine que lhe faziam essa pergunta assim, na rua (...) e tente avaliar pela sua
surpresa ao recebê-la e pela resposta que eventualmente lhe daria, o que é que pensa a
respeito da necessidade de saber pensar; se alguma vez teve dúvidas sobre se sabe ou
não pensar, ou quantas vezes, e exatamente de que maneira, é que o problema se lhe
pôs.
Pode achar estranho que essa pergunta lhe fosse posta assim, numa situação
ocasional de rua. Seria de qualquer modo curioso saber ao certo porque é que seria
estranho, e não seria estranha a situação contrária, isto é, a situação real – em que ela
nunca se lhe põe, nunca se lhe pôs, nunca se lhe porá. o pensamento de Sócrates é, antes de mais nada e depois de tudo,
essencialmente antropológico.
“Conhece-te a ti mesmo”. O que há em mim de humano?
O que me faz ser homem? O que é que se tem de ser para ser homem? O que é ser
homem? Ou, mais simplesmente, O que é o homem?” Porque ser homem é construir-se
como homem. Não se nasce homem, o homem é uma tarefa a realizar-se. Neste sentido,
Sócrates antecipa teses que serão caras tanto ao idealismo como ao existencialismo, por
exemplo. Sócrates paira, incontestavelmente, no pensamento ocidental!
E esta antropologia é indissociável de uma ética. Porque ser homem é, afinal,
com toda a certeza, comportar-se como homem, isto é, moralmente. Aí reside a sua condição de homem. e o homem não nasce mas faz-se homem. Porque inventa e
constrói valores e age em coerência com esses valores. Mais que desejar o saber, o
homem deseja a sabedoria. E a palavra sabedoria tem, em grego, o significado de saber
(teórico) e de sageza – conhecimento prático, relativo à acção. Ora a acção
especificamente humana é a acção moral. Mais: para Sócrates, a filosofia só é teórica
porque é prática, porque tem que ser prática. Isto é, sou levado à teoria por exigências
práticas e a teoria está, portanto, ao serviço da prática. Este mote será eternamente
repetido ao longo da história da filosofia (Cf. Kant e todo o idealismo alemão,
Kierkegaard, para citar os seus mais acérrimos defensores).“O filósofo prático, o
mestre da sabedoria através da doutrina e do exemplo, é o verdadeiro filósofo.” (KANT,
Conceito da filosofia em geral, “O fantasma da
majestade socrática não deixa de nos vir à mente ao meditarmos esta concepção
Kantiana do filósofo”. De facto, Sócrates é, a
todos os títulos, a figura, a imagem, por excelência, do filósofo, o verdadeiro filósofo,
aquele que é fiel ao sentido e significado essencial da filosofia, é aquele que pensa,
reflecte e teoriza – que pensa a vida. Ora, para pensar a vida é primeiro necessário viver,
experimentar e vivenciar a vida. Mas o verdadeiro filósofo não se limita a viver e a
pensar a vida, “... a sua própria condição de filósofo exige um empenhamento vital: é
mestre da sabedoria pela doutrina e pelo exemplo. A filosofia adquire, assim, um cunho
acentuadamente ético.” É que pensa-se a vida para
nortear a vida. Constrói-se uma concepção do mundo e da vida, uma doutrina, para dar
sentido à vida e para agirmos em conformidade com essa concepção. É-se filósofo,
sobretudo, pelo exemplo. Por isso, a filosofia é, antes de mais, prática, ou seja, ética. A
filosofia apresenta, pois e simultaneamente, um carácter teorético e outro prático ou
ético. Porque teorética, a filosofia é um saber, e o filósofo é detentor de uma ciência
entre outras ciências. Mas se se limitar a isto, nada a distingue em particular de qualquer
outra ciência. Para ser autenticamente filosofia, ela precisa de fazer a ligação ao seu
tema central, ao objecto último do seu saber, ao objecto primeiro que a move, isto é, ao
homem. E se a filosofia não levar a cabo esta relação do saber ao homem adultera-se a
si mesma, prostitui-se e trai-se no seu sentido mais fundamental, porque o seu sentido é
o homem e está no homem, porque o seu destino é o homem. Só cumprindo este
destino, que é o seu, é que a filosofia aparece verdadeiramente como sabedoria, uma
sabedoria que não nega a ciência nem lhe volta as costas, antes pelo contrário, a inclui,
porque o homem, para viver, para agir, para estar no mundo e na vida e neles se situar,
precisa de saber, de pensar, de conhecer... Então, “o filósofo tem de veicular a própria
sabedoria (...) O filósofo encontra-se ligado à sabedoria por um vínculo essencial e esse
vínculo não diz respeito apenas a um doutrina ou a uma gnose, mas a uma vida – ele exercita a sabedoria ou exercita-se na sabedoria (...)”. Este o sentido mais profundo do “conhece-te a ti mesmo” socrático.
O diálogo socrático versa por isso sobre valores. O que é a santidade?
(Eutifron) O que é a coragem? (Lacques) O que é a justiça? É preciso saber o que é a
justiça, para se ser justo. Por isso, ninguém é mau porque queira. Só não se age bem,
porque não se sabe o que é o bem. Rousseau bem se inspirou em Sócrates!
O elo profundo entre a filosofia e a antropologia é claro: “a preocupação
antropológica ao situar-se no centro do perguntar filosófico comandando todas as outras
interrogações que sobre o seu fundo se erguem e mais imediatamente se revelam, não
reveste um carácter exclusivamente teorético, antes se abre ao horizonte da sageza, que
tem de traduzir-se numa prática, no dar-se de um destino.” A vinculação da filosofia à antropologia é patente. “Que é o homem?” é
verdadeiramente a pergunta de filosofia porque, para o homem, “ser homem é o
problema e o destino”. E mesmo quando a filosofia se
interroga sobre questões que parecem nada terem a ver com o homem, sobre o ser ou
sobre o conhecimento, por exemplo, na verdade a preocupação pelo homem está-lhe
subjacente. “Qual o traço de união que permite ligar os vários ramos da investigação
filosófica? Na sua radicalidade, o interesse pelo homem.
É na verdade, a preocupação antropológica que funda a aquisição de novos
saberes na dupla medida em que são saberes do homem. São, por um lado, saberes do
homem, no sentido em que dizem, no fundo, algo acerca do homem, falam do homem e
do seu mundo, daquele horizonte em diálogo com o qual ele vive (...). São, por outro
lado, saberes do homem, na medida em que no seu próprio originar-se incluem o
homem. (...) O homem encontra-se indiscutivelmente ligado ao destino da filosofia
como assunto e como sujeito.” Ora é precisamente aqui que a ironia nos deixa. Ela obriga a perguntar-nos pelo
homem, ela desemboca no “conhece-te a ti mesmo”, centra-nos no essencial e remetemos
para o homem, exige a conversão do exterior, do mundo para nós próprios. Sem
apelo nem agravo, ela coloca-nos face a face a nós mesmos. Sem ter onde se esconder,
sem lugar para onde fugir, o homem está, finalmente, perante si mesmo. A ironia é,
pois, momento primeiro e fundamental do diálogo. Sem ela não é possível colocarmonos
em posição de querer saber, de desejar o saber e de o poder construir. Primeiro há
que destruir o falso saber, fazer estilhaçar a carapaça sob a qual nos defendemos dos
outros e nos escondemos de nós próprios. Só depois disto e possível a busca e a
construção do saber que desejamos. Só depois disto é possível a maiêutica, a arte de
pesquisar e aceder ao verdadeiro conhecimento, a arte de o fazer nascer.
Contudo, esta segunda parte do diálogo quase nunca é realizada. O homem
que, seguro de si, entrava no diálogo com Sócrates, sai dele alquebrado e irritado de tal modo que recusa-se a continuar o diálogo. Nos poucos diálogos em que a maiêutica é
realizada, Sócrates ajuda o interlocutor a aceder à verdade. Mas quem chega à verdade,
quem a diz, é o interlocutor. Nunca Sócrates, que nada sabe e nada pode vir a saber, de
qualquer forma, o verdadeiro conhecimento só é possível também pelo diálogo. O
diálogo é, pela maiêutica, pesquisa do saber, mas pesquisa e procura em comum do
saber. O conhecimento e a verdade são, por essência, comuns, busca comum, comunhão
e partilha. E a verdade que desta forma se procura é uma verdade comum, uma verdade
comum a todos, isto é, uma verdade universal. Aliás, isso define o próprio conceito de
verdade. Uma coisa só é verdadeira, uma afirmação só é verdadeira se for reconhecida
como tal por todos nós. Por sua natureza, a verdade é intersubjectiva. Por isso, Sócrates
não aceita factos como argumentos. A opinião funda-se em casos, em exemplos, em
factos. E Sócrates exige uma deslocação do tema do diálogo: “Repara que eu não te
convidei a indicares-me uma ou duas dessas muitas coisas que são santas, mas aquela
característica geral que faz que todas as coisas santas sejam santas”. Então, “a pouco e pouco transformou-se o diálogo: a ironia socrática fê-lo
passar do domínio empírico, onde se afundava e onde apenas as preferências
contingentes podiam ser expressas, ao da essência, onde um saber deve ser elaborado.” Enfim, “a aposta filosófica – que a cultura retomou sob
múltiplas modalidades – está lançada. O problema posto com exactidão é este: será
possível a construção de um discurso que satisfaça todo o indivíduo de boa fé e lhe
permita responder eficazmente às questões teóricas e práticas que a ele se põem?
Haverá um discurso (como ciência) universal?” A consciência da ignorância tinha empurrado Sócrates obstinadamente para o
diálogo. Pelo diálogo verifica, para sua surpresa, que o oráculo, afinal, tinha razão. Fala
com os políticos, fala com os poetas, com os militares, com todos os que vulgarmente
são tidos na conta de sábios. Dessas conversas conclui que eles nada sabem, apenas
julgam saber, crêem saber, pensam que sabem. E é essa a grande diferença entre
Sócrates e os seus concidadãos: ele não sabe, ou melhor, ele sabe que não sabe – Só sei
que nada sei – (a esta atitude Nicolau de Cusa, mais tarde, denominá-la-á de doutaignorância).
Sócrates é realmente o homem mais sábio do seu tempo! O mesmo dirá
Platão na Carta VII “Sócrates, que não receio proclamar como o homem mais justo do
seu tempo.” Pela ironia Sócrates nega, diz não às crenças, às convicções e às opiniões
geralmente aceites e correntes. Diz não às ideias feitas. “De facto, cumpriu a única
tarefa que o interessa e para a qual diz ter sido chamado. À opinião ele não opôs, como
um desses sofistas em moda, outra opinião. Provou a ineficácia de toda a atitude mental,
de toda a conduta baseada na opinião. Ele pôs em evidência o vazio da opinião.” O interlocutor, que tinha entrado para o diálogo confiante e seguro, cheio de
certezas, das suas certezas, sai dele alquebrado, molestado e furioso. Mas o pior nisto
tudo é que Sócrates destrói-lhe as certezas, prova que são vazias e sem sentido, confusas
e contraditórias. Tira-lhe as crenças com que se movia em segurança na vida e no
mundo. Deixa-os sem nada. Face ao colapso dessas certezas, agora pseudo-certezas,
agora falsidades, como enfrentar a vida? Como mover-se no mundo? Só há uma saída:
construir outras concepções. Mas isso é trabalhoso e exige esforço. Dá trabalho pensar e
construir novas ideias, sempre provisórias, contudo. Por isso, aceder a dialogar com
Sócrates é aceitar o convite para começar a pensar, para exercer esse inalienável direito
de cada um de nós que é pensar por si mesmo. Direito esse que não se pode delegar, sob
pena de deixarmos de ser homens. “Convida somente a pensar, quer dizer, apor em
questão o que cada um na cegueira da quatidianeidade e da existência banal, toma por
justo.” Por isso, “... o primeiro momento da filosofia – aquele que põe no caminho da
eventual ‘sabedoria’ – consiste em ‘psicanalisar’ a opinião, em lhe revelar a consciência
errada que ela tem de si mesma.” Não é outro o trabalho da
ironia. Por isso também, “as pessoas instaladas sabem que Sócrates é efetivamente um
‘moscardo’; o único meio de evitar que ele provoque um radical levantar de problemas é
matá-lo (ou, pelo menos, obrigá-lo ao exílio, o que lhe arruinaria todo o crédito.” Compreende-se, assim, este ódio generalizado da cidade contra Sócrates. É
preciso vermo-nos livres dele de uma vez para sempre. Não admira, pois, que Sócrates
seja levado a tribunal: acusado por Melito, poeta de profissão e representando toda a
tradição dos grandes educadores tradicionais da Grécia, os poetas, de corrupção da
juventude, de desviar a juventude dos valores tradicionais, de subverter a juventude;
Acusado também por Anito. Profissão: político. Representa o ódio de todos os
homens públicos e da Polis contra Sócrates. Acusação: não cumprir os seus deveres
cívicos e políticos de cidadão.
Acusado ainda por Lícon, sofista, que representa todos os sofistas, oradores e
professores de retórica. Acusação de impiedade a juntar às outras duas. Sócrates não
acredita nos deuses da cidade e quer introduzir novos deuses.
É evidente que nenhuma destas acusações assenta em fundamentos sérios. “O
processo é uma reacção da cultura adquirida contra um pensamento que recusa todo o
adquirido, seja ele antigo ou de recente data.” Sempre Sócrates cumpriu os seus deveres cívicos e políticos. E bem. De tal
modo que o exército ateniense lhe quis atribuir o prémio de bravura pelo seu
comportamento na Guerra do Peloponeso (432-429 A.C.) E cumpriu-os até ao fim.
Mesmo depois de condenado à morte, recusa a fuga, pois isso seria desrespeitar a lei e,
assim, dar razão à acusação que, falsamente, contra ele tinha sido feita. A verdade é que Sócrates nunca foi político, nunca fez política e sempre se
recusou a fazer política. Talvez fosse esse, afinal, o seu grande crime!
Então a que se deve este ódio de uma cultura inteira contra Sócrates? As
verdadeiras razões são fáceis de encontrar. Residem na conduta de Sócrates que “ao
examinar assim as pessoas, ao mostrar aos que assistem a estas entrevistas que essas
pessoas que julgam ou pretendem ser possuidoras de um saber nada sabem que valha a
pena, ao pôr assim em evidência a fraude dos ‘especialistas’ – políticos, oradores,
poetas, técnicos – Sócrates cria inimigos e inimigos poderosos, pois que se trata
precisamente dos que dominam a opinião pública e dirigem a Cidade.” Portanto, Sócrates tem que morrer. Ele próprio recusa as outras alternativas que
vão surgindo ao longo do seu julgamento: pagar uma multa? Nem pensar! Sócrates é
demasiado pobre!
O exílio? Também não. Noutra cidade qualquer continuaria a agir da mesma
maneira, a levar a cabo o seu inquérito, a comportar-se como moscardo, a criar ódios e
inimizades. Isso seria tão só adiar o seu destino.
Já depois de condenado pelos juízes, supremo desplante o de Sócrates quando
afirma que adoptou um género de vida “que me permitiu prestar a cada um de vós em
particular aquilo que eu considero o maior dos serviços, se pude convencer-vos que é
mais importante cada um cuidar de si próprio do que daquilo que lhe pertence, de forma
a tornar-se o melhor e mais sábio possível (...) Que pena mereço eu, pois, por ter agido
assim? Acho que uma recompensa, Atenienses.”Mas “propõe este homem a minha condenação à morte. Seja assim!” Sócrates escolhe e decide o seu próprio destino, até ao fim e até no fim. Assim
seja!
A morte de Sócrates tem várias consequências insuspeitadas.
“A vida de Sócrates, o seu processo, a sua condenação, a sua morte, tiveram
para Platão, além do choque afectivo que provocaram, um valor de símbolo.
A condenação, em particular, constitui o acontecimento a partir do qual se
impôs, a seus olhos, como necessária a decisão de filosofar. (...) Porque o acto de
filosofar surge na verdade como uma resposta, a resposta a uma situação histórica
insustentável, aquela em que triunfam, irrisoriamente e na desordem, a ignorância, a
mentira, a injustiça, a violência.” Ora esta situação histórica
“insustentável”, em que reina impunemente a desordem e a violência e em que triunfam
estupidamente a ignorância, a mentira e a injustiça. É a situação criada pela democracia
ateniense. Por isso, Platão, que nunca foi um democrata, nunca perdoará à democracia
ter morto Sócrates e sempre a considerará o pior de todos os regimes, criticando-a tenazmente pelos vícios em que se funda, pela corrupção que intimamente a atravessa,
pelas contradições que, de dentro do seu seio, finalmente, a farão cair e colapsar.
Isto é, Platão considerado por muitos (Châtelet ou Koyré são desta opinião)
como um dos maiores, senão mesmo o maior, génio da cultura ocidental, nunca se teria
dedicado à filosofia se a cidade, por acto político, não tivesse assassinado Sócrates! De
facto, a grande paixão de Platão, toda a gente o sabe, é a política. A sua vocação é a
política. E se dela se desvia – a filosofia é o grande desvio – é, em última análise, por
causa da própria política. Tal como está, a vida política é insustentável. Tal como está, a
situação política é injusta. É preciso mudar a vida e a situação políticas. É preciso
mudar a política! Por isso é que se torna necessário filosofar!
Uma outra consequência tem a ver com aquele que será o destino da própria
filosofia (e do filósofo) na cultura ocidental.
Com Sócrates a filosofia é actividade viva que se faz e se consuma no próprio
acto de fazer-se. Por isso é diálogo e não escrita. Com Sócrates a filosofia é pública,
faz-se na rua, é acessível a todos e para todos.
Enfim, a filosofia é nómada, porque o pensamento é nómado.
Ora, Sócrates morreu por ter querido filosofar.
A filosofia e a sociedade tirarão a ilação: doravante a filosofia abandonará a
praça pública, tornar-se-á privada – realizada só por alguns e acessível apenas para
alguns – e encerrá-la-ão em ghettos - as escolas/as Universidades. Ficará enclausurada
no seu mundo de quatro paredes e apenas aí se desenvolverá e construirá a sua história.
A filosofia sedentarizou-se.
Com Sócrates a filosofia incomodava, inquietava, libertava; tornou-se perigosa
porque potencialmente subversiva. Para sobreviver, aquietou-se, acomodou-se. Para ser
tolerada, social e politicamente, deixou-se domesticar.
“Todos nos lembramos: Sócrates morreu por ter querido fazer política.
Vivemos sob o signo desta condenação. Porque a lição foi tirada. Desde então, o
filósofo já não quer morrer.
Desejo legítimo, mas que implica um grande número de desvios. O principal:
que a filosofia tenha um lugar de expressão e de transmissão privilegiado. Será ele, em
primeiro lugar, a Academia. É hoje a escola e a Universidade. Sócrates filosofava em
qualquer lado, com qualquer pessoa. (...) Primeiro desvio, pois: o filósofo devia parar,
instalar-se, tomar posição num lugar determinado do espaço político, da Instituição.
Sedentarização da filosofia que imediatamente se torna um saber.
Segundo desvio: o filósofo escreve e política. A atitude tem importância.
Porque a escrita autoriza todos os controlos, todas as revisões (...). Sócrates falava,
Platão escreverá; Sócrates interrogava, Platão ensinará. (...) Terceiro desvio: a filosofia era primeiro a viagem, o encontro efectivo da
diferença, a experimentação da alteridade. Por isso o Cidadão matou o filósofo: o
mundo destina-se nas muralhas da cidade. (...) Porque o nómada atravessa os sinais e
dissolve os códigos, sem se submeter a eles. Fala-se então de subversão. A morte era o
único meio de sendentarizar o filósofo.
Quarto desvio: a reprodução do filósofo (= a perpetuação da filosofia) pela
especialização. Fim da partilha: os homens já não são todos filósofos. Única concessão:
todos os homens podem sê-lo.
(...)
Tendo sempre por horizonte último a sua sobrevivência, o filósofo tornou-se
funcionário. (...) O filósofo passa a ser retribuído pela sua tarefa de docente, e, pior
ainda, pôs a sua finalidade nessa tarefa. O funcionarismo é o último avatar do
sedentário: este enraíza-se no seu lugar de trabalho, imobiliza-se definitivamente. (...) O
filósofo funcionário sabe que não poderá mais recorrer ao nomadismo: isso significaria
outra vez a sua morte.
(...) O filósofo, a sala de aula, o aluno. O filósofo é, pois, docente. A partir daí
a filosofia não é mais que uma pedagogia. (...)
Ora, uma sala de aula revela muito. É o lugar onde se forma o corpo do
sedentário. (...)... o filósofo toma aí lugar, atrás da cátedra, com as costas para a parede.
Diante dele, a aula (o termo designa, entre outras realidades, a colectividade dos alunos
que educa e a sala onde ensina). (...) O filósofo (...) aceita ser percebido como
dispensador do saber filosófico. Não resta mais então o que contar os passos que
separam este saber da verdade.
Docente, (...) ali se fixa, na posição professoral, e torna-se gestor dum
segmento de poder. O lucro tirado da sedentarização: um acréscimo de poder. Que
talvez se traduza em termos de prazer.”
SÓCRATES.
PORQUÊ SÓCRATES?
“E ste erudito é considerado o fundador da filosofia ocidental. Sócrates
ensinava os seus discípulos interrogando-os para os levar a descobrir aquilo que
julgavam desconhecer. Esta forma de fazer frutificar os espíritos ajudava-os a avançar
no caminho da verdade. A sua máxima – “Conhece-te a ti próprio” – vale-lhe a
paternidade do nosso programa europeu de educação.”
ARISTÓTELES, (1951). Metafísica, Coimbra, Atlântida. BARATA-MOURA, José, (1972). Kant e o conceito de Filosofia, s.n., Sampedro. BRUN, Jean, (1969). Socrate, 4.ª ed., Paris, P.U.F., (col. Que sais-je?) CHÂTELET, F., (1978). Platão, in: CHÂTELET, F. (Dir.), História da Filosofia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, vol. I, 63-113. CHÂTELET, François, (s.d.). Platão, Porto, Rés. GRISONI, Dominique (Org.), (1977). – Políticas da Filosofia, Lisboa, Moraes Editores. HEIDEGGER, (1959), Qu’appelle t’on penser?, Paris JAEGER, Werner, (s.d.). Paideia, Lisboa, Editorial Aster KANT, Immanuel, (1988). Resposta à questão: Que é o Ilusionismo?, in: KANT, A Paz Perpétua e outros Opúsculos, Lisboa, Edições 70, (col. Textos FILOSÓFICOS, 18), 11-19. MAFAGLHÃES-VILHENA, (), O Problema de Sócrates, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. MONTEIRO, João Sousa, (1983). Tire a mãe da boca, 2.ª ed., Lisboa, Assírio e Alvim. PLATÃO, (1972). Apologia de Sócrates. Êutifron. Críton, Lisboa, Verbo. PLATÃO, (1954) Fédon, Diálogo sobre a Imortalidade da Alma, 2.ª ed., Coimbra, Atlântida Editora, (col. Biblioteca Filosófica). |
mal compreendido, dá azo a múltiplas e diversas interpretações