Foi Descartes (1596-1960) que, pela primeira vez, formulou explicitamente a
necessidade de se distinguir entre mente e corpo. Claro que outros filósofos, desde a
antiguidade, já haviam refletido sobre a natureza da alma (ou da mente) e apontando para
aquilo que julgavam ser algumas de suas características especiais, como, por exemplo, a
imaterialidade e a imortalidade. Mas a filosofia de Descartes (o cartesianismo) serviu para
reacender um debate que atravessa todo o pensamento moderno: a polêmica entre o
monismo e o dualismo.
O monismo é a tese que sustenta que só existe um tipo de substância no universo,
seja ela material ou espiritual. A versão mais freqüente do monismo é o materialismo, ou
seja, a teoria de que não existe nada além da matéria e suas possíveis manifestações no
universo. De acordo com essa visão, fenômenos mentais são idênticos aos fenômenos
físicos, pois mente e cérebro são a mesma coisa. Por outro lado, o dualismo sustenta que há
duas substâncias do universo e uma diferença fundamental e irreconciliável entre elas.
Nunca poderíamos supor que a mente e cérebro são a mesma coisa. A versão mais
conhecida do dualismo é o que chamamos de espiritualismo.
Descartes era um dualista. Ele supunha que mente e matéria teriam propriedades
radicalmente diferentes. Um pedaço de matéria, por menos que fosse, seria sempre
divisível. O mesmo não podemos afirmar acerca de uma idéia ou de um estado mental: não
teria cabimento supor que um dia poderíamos dividir um pensamento em fatias, da mesma
forma que fazemos com um pedaço de pão ou uma barra de ferro. Mesmo quando temos
uma idéia complexa e procuramos transformá-la em várias idéias simples, cada uma delas
será sempre uma unidade indivisível.
Esse argumento era bastante convincente e exerceu grande fascínio entre os
filósofos contemporâneos de Descartes. Afinal, encontrava-se uma boa razão para postular
a existência de uma assimetria entre mente e corpo. Mas logo algumas dificuldades
começaram a ser apontadas. Se alma e corpo são distintos e se a mente é imaterial, como
poderia ela influir sobre nossas ações? Nunca poderíamos imaginar que algo imaterial pode
afetar alguma coisa do mundo como, por exemplo, nosso próprio corpo. Mas isto
certamente vai contra nossas intuições mais simples e cotidianas: temos certeza de que é a
nossa mente, com seus pensamentos, desejos e intenções, que regula e causa nossos
comportamentos ou ações. Separar mente e corpo parecia uma tarefa relativamente fácil: os
problemas começavam a aparecer na medida em que os dualistas precisavam encontrar uma
maneira de conceber o modo como essas duas coisas poderiam interagir. Se a mente é
separada do corpo, como posso saber qual é o meu corpo?
Descartes tentou oferecer uma solução para esses problemas. Ele falava da
existência de um órgão especial, localizado logo abaixo da cabeça, a glândula pineal. Este
órgão (que hoje sabemos ser a hipófise) seria responsável por estabelecer uma ponte entre a
alma e o corpo. Mas como isso seria possível, Descartes nunca explicou. Para estabelecer
essa ligação a glândula pineal teria de estar a meio caminho entre algo material e algo
imaterial. Seria possível conceber a existência de um órgão com tais características? A
filosofia de Descartes acabava se tornando um manual de anatomia fantástica!
A partir desse episódio apareceram várias teorias tentando relacionar mente e corpo.
A mais interessante e original talvez tenha sido a do filósofo alemão Gottfried Wilhelm
Leibniz. Ele acreditava na existência de uma harmonia preestabelecida no universo. Mente
e corpo não precisariam ter nenhum tipo de ligação, pois, de acordo com a harmonia
preestabelecida, tudo o que se passa na esfera do mental encontra um correspondente na
esfera do mundo físico. O físico e o mental não precisam ter nenhuma ligação entre si, eles
apenas "caminham juntos" como se no início do universo um Deus tivesse programado o
mundo ao modo de duas séries que correm simultânea e harmoniosamente. Mas essa teoria
soa hoje, para nós, no mínimo como algo bizarro.
Por não conseguir boas soluções teóricas para o problema da ligação entre mente e
corpo, as teorias filosóficas oscilaram, a partir de então, entre posições radicalmente
monistas (materialistas) ou posições radicalmente dualistas. Mas sempre havia dificuldades
nas tentativas de reduzir o mental ao físico ou para sustentar que a mente nada tem a ver
com o cérebro.
No século XIX esse debate parece ter pedido um pouco o fôlego inicial. Nem
mesmo o aparecimento da psicologia, como uma nova ciência que pretendia investigar o
funcionamento da mente, serviu para realimentar a discussão que tanto entusiasmou os
filósofos dos séculos anteriores. A filosofia se ocupava de outras questões que pareciam
mais urgentes, como, por exemplo, os destinos da humanidade, da história e dos conflitos
sociais. Ademais, a influência da filosofia de Immanuel Kant (1724-1804) ainda era muito
grande. Kant julgava ter mostrado, de uma vez por todas, que nunca poderíamos chegar a
uma solução para o problema das relações mente-corpo nem tampouco chegar a uma
conclusão definitiva acerca da natureza do pensamento. Essas questões seriam,
rigorosamente falando, indecidíveis, e seria inútil tentar defender seja o dualismo seja o
monismo, uma vez que sempre haveria razões igualmente fortes para adotar uma posição
ou outra.
Foi preciso aguardar os progressos da Neurofisiologia para que este debate se
reacendesse. A segunda metade do século XIX foi particularmente fértil para essas
investigações. Descobriu-se o neurônio e sua capacidade de transmitir energia elétrica. As
pesquisas sobre anatomia do cérebro também viveram progressos consideráveis. E no final
do século XIX iniciam-se pesquisas mais sistemáticas sobre a natureza das doenças mentais
e do hipnotismo. Surge a psicanálise de Sigmund Freud, e com ela os médicos e cientistas
voltam a se perguntar se mente cérebro seriam uma só e mesma coisa. As investigações de
Freud e sua aplicação na tentativa de curar algumas moléstias mentais abriram perspectivas
novas e desconhecidas acerca da natureza da mente.
Mas é no século XX que vai surgir a Filosofia da Mente propriamente dita. A
Filosofia da mente é um novo esforço para retornar os principais temas clássicos que
atravessam o pensamento na modernidade. Era preciso fazer uma nova tentativa no sentido
de determinar a natureza última dos fenômenos mentais; uma tentativa que faria a reflexão
filosófica mergulhar novamente em direção ao exame das grandes teorias metafísicas mas
que não poderia, dessa vez, ignorar os resultados das pesquisas sobre o cérebro humano. A
questão das relações entre mente e cérebro passa a construir uma de suas preocupações
fundamentais. Era preciso encontrar novas teorias que pudessem dar conta das relações
entre fenômenos físicos e fenômenos mentais. Esboçar tais teorias era necessidade de
premente, sobretudo na medida em que o século XX tinha se iniciado com uma forte
tendência para a adoção do monismo materialista, resultante do grande entusiasmo pelas
pesquisas neurofisiológicas que se avolumavam cada vez mais.
Ao abordar o problema das relações mente-cérebro os filósofos da mente tentaram
inovar, propondo novas teorias. Uma das teorias mais notáveis foi aquela proposta por
Gilbert Ryle em 1949. Ela marcou o início da Filosofia da mente contemporânea. Ryle
dizia que o problema das relações mente-corpo não deveria sequer ser considerado um
autêntico problema; ele seria o resultado de uma imensa confusão teórica cuja origem está
na maneira pela qual empregamos nossa linguagem.
Ao longo dos séculos nossa cultura teria gerado equivocadamente dois tipos de
vocabulários: um "vocabulário do físico" e um "vocabulário do mental". Os dois falam
exatamente da mesma coisa, mas eu emprego errôneo levou-nos a crer que o físico e o
mental são duas substâncias diferentes e incompatíveis. Se procedermos a uma análise
rigorosa do emprego da nossa linguagem veremos, no final, que nem faz sentido falar de
um problema mente-corpo. Este problema seria uma ilusão que deveria ser dissipada, e esta
seria a tarefa que o filósofo da mente teria de empreender através da análise lingüística.
Por exemplo, quando dizemos "minha mente está cansada de tanto estudar" ou
"estes pensamento me causam dor de cabeça" estaríamos alimentando tal ilusão, pois essas
são expressões que implicitamente se referem à mente como uma coisa ou uma substância
concebível como algo separado do corpo. Nossa linguagem está povoada por centenas de
expressões desse tipo: por isso teria surgido o "problema mente-corpo" que, na verdade,
nunca teria sido mais do que um grande equívoco dos filósofos anteriores.
Mas o entusiasmo pela teoria de Ryle durou pouco. Uma forte tendência em direção
ao materialismo começou a se manifestar nas décadas de 50 e 60. Uma verdadeira onda de
ensaios e artigos escritos por filósofos americanos e ingleses invadiu as revistas filosóficas
da época. Aliás, os filósofos da mente sempre preferiram os ensaios e pequenos artigos
sobre temas específicos, evitando, na maioria das vezes, a produção de livros mais
extensos. Novas versões do materialismo foram propostas e passaram a predominar na
Filosofia da Mente. Os novos materialistas eram muito imaginosos e logo propuseram uma
teoria que ficou conhecida como teoria da identidade entre mente e cérebro. Essa teoria foi
proposta por um filósofo australiano, J. J. C. Smart, que sustentava que estados mentais são
idênticos a estados cerebrais. Uns e outros seriam a mesma coisa, com uma diferença
apenas aparente, da mesma maneira que as nuvens e gotículas de água são a mesma coisa,
embora seja comum nos referimos a elas como elementos distintos.
Mas será cabível sustentar uma identidade entre mente e cérebro? Se duas coisas são
idênticas, elas devem ter as mesmas propriedades. Estados cerebrais devem-se a mudanças
que ocorrem com os neurônios. Os neurônios são úmidos, transmissores de corrente elétrica
e ocupam uma posição no espaço. Terá sentido supor que estados mentais poderiam ter
essas mesmas propriedades? Teria sentido afirmar que meu pensamento é úmido, ou que
minha ansiedade está a cinco centímetros do hemisfério direito do meu cérebro?
Os materialistas precisavam imaginar uma outra maneira de conceber a identidade
entre estados mentais e estados cerebrais. Uma solução interessante foi o que eles
chamaram de identidade teórica. Um exemplo de identidade teórica é a seguinte afirmação:
água = H2O. Hoje em dia ouvimos essa asseveração com naturalidade, mas isso só passou a
fazer sentido depois que se fez a análise química da água e se descobriu que ela é composta
por duas partes de hidrogênio e uma parte de oxigênio. Da mesma maneira afirmamos que a
luz é radiação eletromagnética. Isto passou a fazer sentido depois da descoberta de todo um
conjunto de teorias físicas que julgamos serem verdadeiras. Ora, dizem os materialistas,
talvez um dia sejam descobertas teorias neurofisiológicas a partir das quais passe a fazer
sentido a afirmação-embora atualmente ainda nos pareça estranha- de que estados mentais
são estados cerebrais. Mas será que isso resolve todos os nossos problemas? O que nos
garante que um dia surgirão tais teorias?
O materialismo é uma doutrina que enfrenta inúmeras dificuldades. O entusiasmo
por teorias materialistas surgiu do fato de que cientistas e filósofos um dia acreditaram que
seria possível encontrar um correspondente cerebral para cada um de nossos estados
mentais. Os aparelhos de eletroencefalografia que permitem medir os impulsos elétricos do
cérebro e representá-los numa fita de papel, devem ter contribuído fortemente para difundir
essa crença. Tornou-se possível, nos modernos laboratórios de pesquisas, saber quando um
indivíduo que dorme começa a sonhar, bastando para isso observar os gráficos produzidos
pelos aparelhos de eletroencefalografia. Mas, mesmo que esses aparelhos permitam saber
quando uma pessoa está sonhando, eles não permitem saber com o que essa pessoa está
sonhando. Da mesma maneira, se analisarmos as modificações químicas do cérebro de uma
pessoa, poderemos saber se essa pessoa está tendo um acesso de raiva, mas essa análise não
nos permite saber do que ela tem raiva. Há muito mais estados mentais do que seus
correspondentes cerebrais, apesar de termos bilhões de neurônios formando inúmeras
ligações e combinações entre si. Uma redução de estados mentais a estados cerebrais parece
uma tarefa quase impossível, e as tentativas de realizá-la só têm servido para nos afastar do
materialismo: elas parecem mostrar que pensamentos são privados e inacessíveis, ou seja,
algo que escapa dos limites do mundo material.
Devemos então abandonar o materialismo? Talvez seja melhor reformular essa
questão de um modo ainda mais radical: é possível se materialista? Se todos os meus
estados mentais são resultados das relações químicas do meu cérebro, como quer o
materialista, então devo supor que o pensamento "estados mentais= estados cerebrais"
também é resultado dessas reações químicas. Isto significa que, se nos próximos segundos a
base química de meu cérebro mudar, eu poderia passar a sustentar o ponto de vista oposto.
O materialismo torna-se, assim, uma tese no mínimo autocontraditória!
Ora, qual será a alternativa ao materialismo? O dualismo? O leitor já deve ter
suspeitado de que falamos muito pouco do dualismo. Mas isto não se deve ao fato de
querermos ser propositadamente tendenciosos. Se adotarmos o dualismo, praticamente não
nos resta nada para falar, exceto a afirmação de que mente e cérebro são coisas distintas. O
dualismo não nos diz nada acerca da natureza da mente, apenas afirma que ela não é
material. Ele só nos fornece um ponto de partida, e isto é muito pouco para que possamos
elaborar uma ciência ou uma filosofia da mente.
O que fazer então? Seria preciso encontrar uma alternativa, seja ao materialismo,
seja ao dualismo. Mas isso seria o mesmo que querer encontrar a terceira margem de um rio
- algo que talvez a Filosofia da Mente nunca possa vir a fazer.
João de Fernandes Teixeira