A QUESTÃO DE DEUS EM MARTIN HEIDEGGER
O problema sobre a questão Deus atinge toda a metafísica, pois, na medida em que se discute sua fundamentação ontológica, viu-se que Deus foi conceituado como um ente maior ("ser supremo") em relação aos demais entes. É nesta proposição que passará pela tradição da teologia e por que não dizer, também pela história da filosofia e até mesmo pela filosofia da religião, para investigar e compreender este momento, em que este assunto se tornaria essencialmente, especulação metafísica.
Dessa forma, não seria possível discutir a questão Deus como o faz na metafísica clássica. Stein afirma que em uma das etapas do estudo de Heidegger ele "estabelece a metafísica como onto-teo-logia e fixa como manifestação dessa onto-teo-logia em que Deus é o mais ente de todos os entes".1
1 STEIN, ERNILDO. "O abismo entre o Ser e Deus (A diferença ontológica recusa a diferença teológica)". In OLIVEIRA, MANFREDO ARAÚJO DE (Org.). O Deus dos Filósofos Contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 158.
2 Coleção Pensadores, Martin Heidegger. Vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 9.
3 Ibidem, p. 11.
Ora, Heidegger procura tratar a questão Deus por outro viés, elaborando uma ontologia fundamental que busque mais profundamente as raízes destes problemas a partir da filosofia pré-socrática. Por isso, ele pergunta pelo Ser do qual, de antemão, só pode ser ele porque qualquer coisa transforma o Ser em ente. Em suma ele trata o Ser não como uma coisa,2 e sim como uma questão, mas nada de entitativo.3
Heidegger por um lado, ele não concebe um Deus possível e improvável de tal modo que seria impossível lhe negar o Ser. Mas o filosofo nunca relacionou seus estudos com a dinâmica do sagrado. O problema é a questão Deus em si mesma. Dele, compreende que não seria possível falar sobre o Ser sem referir a Deus, inclusive vinculado à sua proposta de desconstrução da metafísica clássica (platônica, aristotélica e sua recepção na filosofia medieval).
É nesta radicalidade ontológica que se leva a questão Deus para outro viés, pelo qual não se considera Heidegger nem teísta nem ateísta. Assim, ele mesmo afirma, em uma de suas obras, que "não é apenas apressado, mas já falso no modo de proceder, afirmar a interpretação da essência do homem, a partir da relação desta essência com a verdade do Ser,
é ateísmo".4 E nem do teísmo "Todavia, com esta indicação não se quer já ter decidido, de maneira alguma, pelo teísmo [...]".5 A partir destas afirmações conclui-se que a problemática primordial não é se Deus existe ou não, e sim como foi colocado à questão. Heidegger compreende esta problemática a partir da ontologia radical, que ele mesmo chama de "ontologia fundamental". Kant afirmava que é impossível conhecer um conceito unitário do Ser ou de um conceito universal de Ser,6 pois o Ser não está ao alcance do conhecer por não poder ser abordado de forma sensitiva ou positiva. O mesmo estaria para além, quer dizer, não podendo ser "entificado".
4 HEIDEGGER, MARTIN. Carta Sobre o Humanismo. São Paulo: Abril cultural, 1973, p. 356.
5 Ibidem, p. 367.
6 Cf. HEIDEGGER. MARTIN. As teses de Kant sobre o Ser. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Apud: STEIN, ERNILDO. Compreensão e Finitude? Op.cit., p. 432.
7 "1. A tese de Kant: o Ser não é um predicado real; 2. A tese da ontologia medieval (escolástica) que recua até Aristóteles da constituição ontológica Essentia e Existentia; 3. A ontologia moderna: os modos fundamentais do Ser enquanto res extensa natureza e res cogitans ser do espírito e 4. A tese lógica no sentido mais amplo de que todo ente pode ser tratado independentemente". Citado in: STEIN, ERNILDO. "O abismo entre o Ser e Deus [...]". op.cit., p. 172.
Em seu artigo supracitado, Stein afirma que Heidegger analisa atentamente em Os problemas fundamentais da Fenomenologia quatro teses sobre o Ser.7 Nessa obra, Heidegger conclui que essas teses não podem ser levadas de forma severa, pois o problema seria a questão do sentido do Ser como tal, enquanto não tiver posta ou respondida. É daí que emerge a necessidade de pôr a questão da diferença ontológica, pois com a distinção entre Ser e ente e a tematização separada do Ser, seria possível sair do domínio do ente.
É nisto que o autor acredita que a tematização do Ser fora compreendida de forma tal que a metafísica clássica estava tematizando o ente, pois o problema, para Heidegger, estava em atribuir qualidade ôntica ao Ser. A partir disso conclui que a metafísica não responde a verdade do Ser, mas tem em vista o ente enquanto ente.
Com isso, Heidegger entende como se moldou a representação plástica (antropomórfica) de Deus sobre o qual falou a metafísica, colocando Deus não como um Ser, mas como ente acima de todos os entes e subordinando ao mesmo conceito do Ser e, ainda mais, posto de forma esplêndida, cujos méritos transcendem o normal que os outros. Podendo dizer que, vê-se unido ao Ser como a dimensão grega da causalidade, da mesma forma na concepção bíblica e concepções atribuídas a Deus como Ser enquanto ato puro, sumo ente, perfeição absoluta, causa sui, motor imóvel e verdade suprema. É isso que o autor define
como "ontoteologia", pensamento que reduz Deus a um ente dando-lhe interpretações como supremo às "coisas" e ente as "coisas", no sentido de uma objetivação dEle.
A partir dessas ideias sobre o ente e o Ser, suas diferenças e da maneira como foram colocadas, Heidegger pergunta de onde se origina a essencial constituição onto-teo-lógica que, porventura, leva a uma interrogação fundamental de como Deus entra na filosofia. A entrada de Deus como uma espécie de "objeto" na metafísica clássica é um fato e Heidegger retorna não para tal metafísica propriamente dita, mas para dentro de sua raiz, como o intuito de compreendê-la em sua função de "refletir o Ser enquanto Ser" ou no entender de Heidegger, de "cuidar do Ser" sem entificá-lo.
Heidegger utiliza-se da noção de passo de volta em filosofia, pois está relacionado ao apontamento do impensado, sendo que o que foi pensado já recebeu seu espaço essencial, portanto:
a diferença de ente e Ser é o âmbito no seio com o qual a metafísica, o pensamento ocidental em sua totalidade essencial, pode ser aquilo é. O passo de volta, portanto se movimenta para fora da metafísica e para dentro da essência da metafísica.8
8 HEIDEGGER, MARTIN. A Constituição Onto-teo-lógica da Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 391.
9 PROEGGLER, OTTO. "Metaphysik und Seinstopik bei Heidegger" (1962). apud STEIN, ERNILDO. O abismo entre o Ser e Deus […]. Op.cit., p. 159.
O problema emerge no momento em que a metafísica se torna teologia. Heidegger o constitui a partir da entrada de Deus para dentro da filosofia. Portanto é correto chamar a metafísica de onto-teo-logia. Poeggeler explica de forma sistemática como Deus entra na filosofia de Heidegger:
"Ela (a metafísica) pensa o ente na sua totalidade conforme seu Ser pensa este Ser platonicamente ‘idéia’, modernamente como representação de objetos e, finalmente, como vontade de poder. Assim a metafísica é a doutrina do Ser do ente, ontologia. Essa ontologia aceita como evidente, para o fundamento do Ser, a presença constante. O ente pode ser fundado Ser como presença constante e, por isso, também disponível. Mas o Ser mesmo precisa de fundamento, para que possa ser constantemente presente. Assim, a metafísica procura aquele ente que, de modo especial, preencha a exigência da presença constante. Ela encontra esse ente no divino subsistente em si, no ‘theion’. Com isso, a metafísica não é só fundamentação portanto, teologia. Justamente porque fundamenta, ela é uma ‘-logia’. Assim, ela é onto-teo-logia". 9
Ora, a partir disso, se percebe que esta ligação entre onto-teologia e metafísica acontece de duas maneiras: primeiro, no seu traço mais geral, o ente fundado no Ser como presença constante e, segundo, o ente supremo que se encontra no divino que permanece em si. Esta presença do divino enquanto ente supremo indica que, "Deus entra na filosofia como uma exigência lógica". 10
10 STEIN, ERNILDO. O abismo entre o Ser e Deus […]. Op.cit., p. 160.
11 HEIDEGGER, MARTIN. Que é Metafísica?. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 261.
"Pelo fato de representar o ente enquanto ente é a metafísica em si a unidade destas duas concepções de verdade do ente, no sentido geral e do supremo. De acordo com sua essência ela é, simultaneamente, ontologia no sentido mais restrito e teologia. A essência ontoteológica da filosofia propriamente dita (prótete philosophía) deve estar sem dúvida, fundada no modo como lhe chega ao aberto o ón, a saber enquanto ón. O caráter teológico da ontologia não reside assim no fato de a metafísica grega ter sido assumida mais tarde pela teologia eclesial do cristianismo e ter sido por ela transformada. O caráter teológico da ontologia se funda, muito antes, na maneira como, desde a antiguidade, o ente chega ao desvelamento enquanto ente. Este desvelamento do ente foi quem propiciou a possibilidade de a teologia cristã se apoderar da filosofia grega".11
O pensamento exige um fundamento. E este fundamento é criado para que o Ser sustente os entes na sua presença tendo em vista que na metafísica esse Ser recebe o nome de transcendental. O Ser seria o fundamento dos entes. Tal "ser" que os sustenta recebe o nome de transcendente, tendo este processo causal, enquanto "causa sui" que funda os entes pelo fato de ela fundar-se a si mesma. É o uno que permite o manifestar-se da multiplicidade dos entes e a recolhe.
A crítica ao paradigma metafísico-clássico, por sua vez, se torna pertinente a partir do momento em que questiona o caráter onto-teo-lógico do pensamento metafísico, não em razão de algum ateísmo, mas pela própria experiência do pensamento, ou seja, da autoconsciência de sua racionalidade metafísica e da coerência de seu raciocínio. Nesse sentido, a crítica heideggeriana ao caráter ontoteológico da metafísica clássica demonstra na inconsistência lógica desse pensamento em sua busca de pensar Deus como ente supremo subordinando-o ao mesmo conceito de Ser dos entes, sendo a unidade ainda impensado da própria metafísica a partir da percebida diferença ontológica.
Assim, parece possível pensar que Heidegger segue o caminho da ontologia, o qual passaria necessariamente por Deus. Ora, como sua ontologia estava sendo explicada de forma radical, nessa passagem só se poderia conhecer a Deus como "ser" para além do horizonte de existência dos entes sem, contudo, se deter para com ele dialogar. Na verdade, em uma leitura um tanto contra-intuitiva a esse paradigma clássico da metafísica, a crítica de Heidegger ao seu caráter onto-teológico emerge como reivindicação do reconhecimento da antiga tradição judaico-cristã da inconcebilidade de Deus, tal como se encontra no pensamento de Santo Anselmo ("Deus é o maior do que se pode pensar", Proslogion 15).
Não obstante, sendo capaz desse encontro, como qualquer pensador que adentre em questões sobre Deus, e nela encontrasse as possibilidades possíveis de Deus, para Heidegger, o mesmo não aconteceria, pois o mesmo poderia e deveria continuar ignorando Deus, não por indiferença, mas por não sentir necessidade dEle.
Devido a essa posição é compreensível, à medida em que se leva em consideração, que o problema da metafísica clássica foi justamente de passar por Deus, pois, ao introduzir Deus (ente supremo) enquanto a exigência lógica para o fundamento do Ser, distanciando-se o caminho em que se buscava o Ser enquanto Ser. Como vimos, à metafísica clássica pensou em fazer jus a Deus por introduzi-lo como princípio (arché) necessário do Ser, como uma exigência lógica, o concebendo-o como ser supremo. Tal exemplar é a concepção de Aristóteles que identifica "Deus" com o motor imóvel, constituindo Deus como o Ser em excelência, antes de qualquer outro. Por isso, tornou-se comprometida a sua busca do Ser, uma vez que, pelo jeito que ela concebeu Deus, esse já não podia mais ser compreendida como o ser supremo, como se pensava, mas como o ente dos entes, porém, um ente.
Devido à entrada de Deus na filosofia enquanto exigência lógica, Heidegger faz a crítica a essa admissão, pois ou o Ser é transcendente ou transcendental como afirma Stein: 12 "[...] ou o Ser é transcendental, e portanto, é seu próprio fundamento, e assim teremos uma autêntica ontologia, ou o Ser é transcendente que funda o transcendental, tirando-lhe seu conteúdo e entificando-o, e teremos uma teologia." Eis aqui o problema filosófico que na verdade se fazia uma teologia, já que a metafísica transformou-se em teologia na medida em que colocou Deus como que uma "síntese final" sobre a fundação do cosmo.
12 STEIN, ERNILDO. O abismo entre o Ser e Deus […]. Op.cit., p. 161.
O problema da lógica no que se refere a Deus haja visto outrora discutido em Epicuro, no que diz respeito ao problema do mal, representa aqui, uma problemática em que os atributos dados a Deus não conseguiam responder a tais questionamentos filosóficos, enquanto crítica, apresentando uma contradição ao que diz respeito à supremacia absoluta de Deus: 13
13 Este parágrafo tem como pretensão apresentar como é possível estabelecer certas contradições através da lógica cuja explicação é quase impossível. Essas persistem ainda mais com o silogismo de Epicuro em problematizar que a exigência lógica permitiu Deus na filosofia devido ao seu atributo de absoluto e perfeito, sendo que através deste problema poria tal questionamento.
14 ESTRADA, JUAN ANTONIO. A impossível teodicéia: A crise da fé em deus e o problema do mal. São Paulo: paulinas, 2004, p. 113.
15 Cf. Verbete "Metafísica". In: MOURA. Dicionário de Filosofia. Op.cit., p. 471.
"Ou Deus não quer eliminar o mal ou não pode; ou pode, mas não quer; ou não pode e não quer; ou quer e pode. Se pode e não quer, ele é mau, o que naturalmente deveria ser incompatível com Deus. Se não que e não pode, ele é mau e fraco e, portanto, não é Deus algum. Se pode e quer, o que só se aplica a Deus, de onde então provém o mal ou por que ele não o elimina?".14
Para Guilherme de Ockham, a metafísica não é propriamente nem ciência e muito menos ciência do Ser, isso porque, se pode dizer, tem por objeto o Ser como objeto primeiro enquanto primado de atribuição e Deus como objeto primeiro desse primado de ‘perfeição’. Ora, se a questão aqui é a perfeição, Epicuro, ao citar esse problema, percebe-se então que, a lógica não traria tanta certeza em suas sentenças, pois conforme Johannes Clauberg (Ontosophi, 1647, p. 288), a lógica não sabe nada (nihil scit).15
No entanto, para Heidegger, a postura da filosofia é criar uma ontologia real e não colocar Deus como uma exigência lógica, pois entender o Ser por uma verdadeira ontologia não é possível por este viés.
Percebe-se no pensamento de Heidegger que existia uma possibilidade de se pensar Deus de maneira diferente da tradição metafísica ocidental. No entanto, essa maneira heideggeriana de se pensar Deus caracterizava uma possibilidade de assimilação ao nada concebido diferentemente da tradição metafísica ocidental. Pois a possibilidade de conceber Deus em Heidegger apresenta, por outro viés, o encontro com o verdadeiro Ser. Assim, parece dizer que ele fechou o caminho direto, teórico para Deus da sua ontologia fundamental, pois é
neste rebaixamento de Deus que Stein concorda que Deus tornou-se um objeto de valorização ética, pondo-se na planejação de valores da subjetividade humana. 16
16 STEIN, ERNILDO. O abismo entre o Ser e Deus […]. Op.cit., p. 161.
17 Ibidem, p. 162.
O mais duro golpe contra Deus não é que seja tudo como incognoscível ou que sua existência seja apontada como indemonstrável, mas que o deus tido por real elevado ao valor mais alto. Pois esse golpe não vem daqueles que estão em volta e não crêem em Deus, mas dos fieis e seus teólogos, que falam daquele que é o mais ente de todos os entes sem nunca terem a idéia de pensar no Ser no mesmo, para com isso tomarem consciência de que pensar e aquele falar são, sob o ponto de vista da fé, simplesmente a blasfêmia de Deus, quando se imiscuem na teologia da fé. 17
Nesta perspectiva, Heidegger demonstra radicalmente que qualquer representação teórica sobre Deus é equivocada, portanto, não passa de ilusão e confusão ontológica. Isso, no entanto, não quer dizer que a questão Deus esteja resolvida. Mas Heidegger mostra que o caminho metafísico-clássico ao conhecimento de Deus está obstruído pelo próprio pensamento e conceito – sempre ontológico – de Deus. Nesse intuito, Heidegger quer abrir um caminho diferente do da metafísica ocidental clássica, caminho para uma abordagem fundamentada em um patamar que esteja para além de teísmo e ateísmo.