"O incontornável como o inacessível" - uma carta inédita de Martin Heidegger
Lenha é um antigo nome para floresta. Na floresta há caminhos que no mais das vezes, invadidos pela vegetação, terminam subitamente no não-trilhado.
Eles se chamam caminhos da floresta.
Cada um segue um traçado separado, mas na mesma floresta. Muitas vezes parece que um se assemelha ao outro. Contudo, apenas assim parece.
Lenhadores e guardas da floresta conhecem os caminhos. Eles sabem o que quer dizer estar num caminho da floresta.
Heidegger, Holzwege
I
Ainda que conste, na primeira edição de Holzwege, o ano de 1950, Heidegger escreve a Karl Jaspers, em 23 de novembro de 1949, "Die `Holzwege' sind jetzt auch da" ("`Os caminhos da floresta' também já está aqui agora", Heidegger/Jaspers 1990, p. 189).
Numa carta de 10 de dezembro de 1949, Heidegger conclui: "O `Holzwege' lhe faço enviar, por esses dias, pela editora, por questão de segurança" (Heidegger/Jaspers 1990, p. 193).
No dia 14 de janeiro de 1950, Jaspers escreve a Heidegger:
Agradeço-lhe pelo Holzwege. Li o que está escrito sobre Nietzsche, a época das imagens do mundo, Rilke. Creio ver ao menos um pouco mais claro o que poderia perguntar-lhe. Coincidências surpreendentes em detalhes e na perplexidade, para mim mesmo perceptível de grande distância no todo do trabalho, me agitaram na leitura. Quando me irritava, dizia-me que duas coisas não devo esquecer: trata-se aqui de Holzwege e trata-se do preparar das preparações. O senhor se revela neste livro no seu antigo nível. O livro me prendeu a atenção mais que seus escritos anteriores. Qual é, no entanto, sua intenção propriamente dita, isso eu não seria capaz de dizer. Iniciar uma crítica não seria hoje possível, nesta breve carta. Permaneci na tensão interrogadora: se iria transformar-se numa possibilidade fantástico-enganadora de pensar-poetar, ou se aqui estava começando uma cuidadosa abertura da porta - se acontecia uma sedutora liberação do éthos ou antes da abertura de um caminho que no fim conduz justamente a tal realização - se aqui encontra expressão um ateísmo gnóstico ou o tatear em direção da divindade. (Heidegger/Jaspers 1990, p. 195-6)
No dia 9 de fevereiro de 1950, Hanna Arendt escreve de Wiesbaden: "Os Holzwege estão sobre a mesa de cabeceira [...]" (Heidegger/Arendt 1998, p. 76). No dia 15 de setembro de 1950, Heidegger escreve à sua amiga: "Na revista Monat deve ter aparecido uma resenha pouco agradável de Holzwege, atrás da qual se presume Jaspers. Mas não leio resenhas; por isso a coisa me é indiferente" (Heidegger/Arendt 1998, p. 117).
No dia 6 de outubro de 1950, Heidegger escreve novamente a Hanna Arendt para confessar: "Ich gehe immer noch auf Holzwegen" ("Ainda continuo andando em caminhos da floresta", Heidegger/Arendt 1998, p. 118). Agora Heidegger não se referia, com o termo "Holzwege", ao seu livro, mas a um estado ou uma situação pessoal que poderia ser interpretada de várias maneiras: eu continuo a filosofar do meu modo; eu continuo na minha filosofia sem saída; as condições de meu trabalho no pós-guerra, fora da universidade, continuam difíceis. Heidegger havia sido demitido, no fim dos anos 40, por uma Comissão da Universidade de Freiburg, que solicitara um parecer de Karl Jaspers. Este fora duríssimo em sua carta, enviada à Comissão, no dia 22 de dezembro de 1945. Seu parecer tornou-se decisivo para a aposentadoria forçada de Heidegger.
Holzwege - Caminhos da floresta, Caminhos que não levam a lugar algum, Sendas perdidas - não é apenas o título do primeiro livro mais importante publicado depois de Ser e tempo e o texto mais representativo do pós-guerra. É o livro que apresenta trabalhos do segundo Heidegger após 1930, produzidos depois da viravolta (Kehre). A expressão "Holzwege" registra também a perplexidade do filósofo com relação à recepção de seu pensamento, no mundo da filosofia, depois da viravolta, ou seja, a reação dos leitores a um livro seu publicado depois dos brutais acontecimentos da era do nazismo, e dos conflitos que passaram a cercar o filósofo, depois do ano de sua reitoria da Universidade de Freiburg, no período de maio de 1933 a abril de 1934.
Quando o filósofo, em 1946, na Carta sobre o "humanismo" declara: "Aqui o todo se inverte" (Hier kehrt sich das Ganze um), ele se refere a seu trabalho de 1930, à viravolta, ao segundo Heidegger, à obra de cuja grandeza só sabemos hoje pela edição póstuma. Com a frase "Aqui o todo se inverte" Heidegger também confessava que o seu pensamento era um Holzweg, um caminho sem saída, o que exigia um ir - acompreensão do ser de Ser e tempo (e contexto), e umvoltar, a história do ser de Contribuições para a filosofia (e contexto).
É por isso que o autor declara, em 1953, três anos após a publicação de Holzwege, numa nota prévia à sétima edição de Ser e tempo:
A segunda metade não pode ser mais acrescentada depois de um quarto de século sem que a primeira receba nova forma de apresentação. Seu caminho permanece hoje ainda necessário, caso a questão do ser deva continuar a mover nosso Dasein. (Heidegger 1953, p. V)
II
Depois do panorama histórico, brevemente traçado, a partir de documentação que hoje temos disponível, quero agora inserir a carta inédita que Heidegger escreveu ao Doutor Hermann Zeltner no dia 2 de agosto de 1950. Podemos observar na correspondência analisada qual a preocupação e o nível de perplexidade do filósofo diante do futuro que estava sondando, com a publicação de uma obra que, ao mesmo tempo em que trazia o estilo típico do autor, apresentava elementos inovadores relativos ao modo de pensar do segundo Heidegger. Holzwege não representava apenas o título, extremamente complexo e sugestivo de um livro, mas também se apresentava como confissão de quem se movimentava na floresta ameaçadora das filosofias do pós-guerra e anunciando uma mudança em seu modo de se auto-interpretar e oferecendo uma nova perspectiva de sua obra.
Todtnauberg, 2 de agosto de 1950
Caro Doutor Zeltner!
Não apenas me alegrei com seus ensaios, mas, sobretudo, pelo fato de novamente ouvir notícias suas.
O que o Senhor escreve é de longe o melhor que tenho lido com respeito a esse tema. Aqui efetivamente está alguém que enfrentou as Sendas perdidas, pensando junto. Desejaria do senhor uma crítica exaustiva do livro. Será que o Senhor não poderia entregar para a impressão o ensaio, publicado no auspicioso jornal da Universidade de Erlangen, mais ampliado, no Merkur de Baden-Baden?
O Senhor escreve, no fim, no último parágrafo: "Heidegger não tem em vista essa possibilidade (do diálogo entre as ciências)".
O Senhor tem razão, na medida em que calo sobre isso. Mas, faz poucas semanas, falei desse diálogo a jovens estudantes (mais priva- damente) como eu penso a Universidade.
Justamente o diálogo a que o senhor se refere eu tinha aí em vista. Mas, para esse diálogo, o pressuposto fundamental é que as ciências particulares estejam dispostas a se interrogarem a si mesmas. Isso somente pode acontecer através do fato de elas, desde o seu próprio trabalho, a partir da coisa, se toparem com o que na coisa é incontornável: o fato de que, em toda parte, já no ente, é pensado e dito o ser. Isso para as ciências incontornável, deve ser experimentado enquanto para elas, com seus meios, inacessível e assim manifestando-se a pretensão do pensamento e do que é digno de ser pensado. Guardar o incontornável como o inacessível, esta é a experiência da essencial limitação das ciências. Reconhecer o limite enquanto limite, esta é a autêntica limitação. Nela se funda o primeiro sentido da especialização inevitável. No pano de fundo dessas considerações, está o pensamento de que a essência da ciência moderna se fundamenta na essência da técnica, está o fato de que a essência da técnica, entretanto, é uma, a figura fundamental do ser que agora impera, no sentido da vontade da vontade. Existem sinais de que estamos, ainda que apenas vagarosamente, avançando na direção de uma viravolta [Kehre] desse destino do ser. Preparar para ela é necessidade e tarefa do pensamento.
No fundo, já em minha aula inaugural de 1929 procurei, em meio às ciências, aplicar-lhes um impulso para o totalmente outro, para dentro do qual elas já sempre se estendem e que, visto desde o ente, é o não-ente, dito extremadamente mas pensado autenticamente o nada enquanto o ser. Até hoje ainda não se compreendeu a intenção fundamental dessa conferência. Em lugar disso só se apanhou o fato de que na minha problematização e no que na conferência se diz sobre a "angústia" e tagarelou sobre "o nada" como um objeto que subsiste por si e o desfez na conversa. Do movimento e caminho do pensamento não se encontra nada.
Como estão as coisas com seus estudos sobre Schelling? Seria tão urgentemente necessário que finalmente fossem tentadas sustentáveis e básicas interpretações dos escritos fundamentais schellinguianos: não para renová-lo ou para fazer dele uma nova corrente, mas para preparar o diálogo pelo qual ainda se espera.
Ainda um pedido prático, caro Doutor! Nosso filho Hermann, que na guerra foi oficial e até o outono de 1947 esteve, em condições muito duras, como prisioneiro de guerra nas mãos dos russos, trabalha com o professor Ritter. Ele chega em Erlangen com intenções especiais para fins de estudo. Ser-lhe-ia muito grato se o Senhor pudesse apoiá-lo com conselho e auxílio. Com cordiais saudações e o desejo de em breve novamente ouvir do Senhor,
Seu M. Heidegger.
III
Quais as informações que nos são transmitidas por essa carta? No que se refere ao contexto histórico, pudemos observar as circunstâncias em que essa carta foi redigida. Interessam, no entanto, para essa análise, as questões teóricas que ela nos traz e que podem ser situadas nas preocupações do filósofo sobre a filosofia em geral, mas particularmente sobre a relação entre as ciências e a filosofia na concepção de Heidegger.
Deixando de lado os aspectos de ordem psicológica, biográfica e de estratégia de representação de sua filosofia depois da catástrofe do nazismo, examinemos os elementos centrais de caráter filosófico. Esses podem ser divididos em três aspectos: o primeiro discute a relação das ciências com a filosofia. Nela se acentua o teorema fundador do pensamento de Heidegger - a diferença ontológica - e nela o sentido que possui na questão do conhecimento humano. O segundo aspecto diz respeito ao modo como Heidegger pensa, a partir de seu teorema fundamental, o problema da essência da ciência e da essência da técnica. Por fim, o terceiro aspecto se refere ao que Heidegger expusera na sua conferência de 20 anos antes, intitulada "Que é metafísica?", na qual examina o problema das ciências na instituição universitária, a posição das ciências diante da questão do ser, abordando essa questão ao falar do nada enquanto um outro modo de colocar a questão do ser.
Como diz na carta, dessas questões o filósofo fala para alguém que lhe acompanhou os passos pelos Holzwege -Os caminhos da floresta ou as Sendas perdidas, ou ainda Os caminhos que não levam a lugar algum - e lhe resume um dos conteúdos fundamentais apresentados pelo livro com esse título.
A primeira questão de ordem psicológica e biográfica, que aparece no texto e que não iremos aprofundar mais, parece-nos bem compreensível no contexto que analisamos na correspondência entre Heidegger, Jaspers e Arendt. O filósofo estava feliz com o novo livro, mas, ao mesmo tempo, ansioso e perplexo, esperando por reações positivas dos críticos, já que soubera do ceticismo de Jaspers e da resenha na revista Monat.
Holzwege era uma pequena prova das milhares de páginas produzidas depois de Sein und Zeit ou, melhor, depois da viravolta, que a publicação póstuma nos está revelando, volume após volume.
Os textos que compõem o livro são os seguintes:
"A origem da obra de arte" - versão final de uma conferência repetida várias vezes nos anos 30.
"A época da imagem do mundo" - apresentada como conferência em 1938.
"O conceito de experiência de Hegel" - resultado de textos de um seminário e de conferências, realizados nos anos de 1942-1943.
"A palavra de Nietzsche `Deus está morto'" - constitui o resultado de cinco semestres de preleções sobre Nietzsche (1935-40) e fora apresentado em pequenas palestras.
"Para que poetas" - apresentado como conferência em comemoração aos 20 anos da morte de R. M. Rilke, em 1946.
"O dito de Anaximandro" - parte de um tratado escrito em 1946. (Heidegger 1952, p. 344ss).
O pedido que o filósofo dirige a um desconhecido, Dr. Hermann Zeltner - discriminado durante o nazismo e condenado a ganhar sua vida trabalhando na Biblioteca Universitária de Erlangen, durante a guerra - era que ele ampliasse sua análise e publicasse sua resenha na revista Merkur. O pedido constituía uma das muitas estratégias de divulgação de sua obra e de retomada de seu lugar no cenário do pós-guerra. Algo semelhante tinha sido todo o movimento de Jean Beaufret e os franceses em torno da Carta sobre o "humanismo" (cf. Safranski 1997, pp. 392 - 410).
IV
A outra questão mais complexa e propriamente filosófica é suscitada a partir do comentário de H. Zeltner sobre as ciências. Com isso, fora tocado o tema do ensaio - "A época da imagem do mundo" que, ao tempo de sua apresentação como conferência, dera o que falar em Freiburg, em 1938.
O artigo procura mostrar como a metafísica marca uma época e percorre todas as manifestações. A metafísica da modernidade tem sua forma de aparecer na subjetividade, na representação e na objetificação. Isso se manifesta na ciência, na técnica, na estética, na cultura e na desdeificação (ateísmo, fuga dos deuses). Esses fenômenos da modernidade mostram a mudança na filosofia desde a Idade Média. Agora, com o domínio da representação, predomina o método, a pesquisa nas ciências empíricas, matemáticas e humanas, e o empresamento na universidade que leva à especialização. O pesquisador se converte em técnico e assim torna-se eficaz. "Ao lado disso, pode, ainda, durante um certo tempo e em alguns postos, conservar-se o romantismo dos eruditos e da universidade, que sempre se torna mais escasso e mais vazio" (Heidegger 1952, p. 72).
O mundo se torna imagem no mesmo processo em que o ser humano se torna subiectum. Heidegger descreve essa época da modernidade, com o domínio da técnica e a objetificação das ciências, como a sombra que não é apenas falta de luz. "Na verdade, porém, a sombra é geração manifesta e impenetrável do brilho velado. Segundo esta concepção de sombra, experimentamos o inesperado como aquilo que é subtraído da representação e, contudo, se manifesta no ente e anuncia o ser velado" (ibidem, p. 104). E em outra passagem, o filósofo conclui que, visto desde a metafísica, encobre-se o velado desdobramento do ser e o ser aparece como o nada. "O nada jamais é nada e tampouco é algo no sentido de um objeto; é o ser mesmo, a cuja verdade o ser humano é então entregue, quando se superou como sujeito e, isto quer dizer, quando não mais representa o ente como objeto" (ibidem, p. 104).
O primeiro aspecto da segunda questão da carta indica o núcleo da sintética problematização que Heidegger apresenta: a saber, que as ciências devem topar-se no seu exercício, com o incontornável: no ente é pensado e dito o ser. Essa é a direção última em que aponta o artigo que citamos acima: "A época da imagem do mundo".
Primeiro, portanto, temos o fato da diferença ontológica como incontornável, na medida em que ela acontece "no aberto entre" que é o Da-sein compreendido "no sentido do âmbito extático do desvelamento e do velamento do ser" (ibidem, p. 104). Toda a relação com os entes passa por esse incontornável, mas ele é inacessível "com os meios das ciências". Só o pensamento pode mostrar isso que deve ser pensado.
"Guardar o incontornável como o inacessível esta é a primeira experiência da essencial limitação das ciências". As ciências têm sua limitação por não poder converter o incontornável em objeto, isto é, ele lhes permanece inacessível. A impossibilidade de objetificarem seu limite leva as ciências à especialização. A especialização que reconhece seu limite como resultado da sua essencial limitação - ter que "guardar o incontornável como inacessível" - aceita que sua vontade de objetivação já está sempre frustrada. A limitação, a impossibilidade de objetificar a diferença ontológica abre as ciências para a filosofia, no diálogo com ela e no diálogo entre elas.
No texto "A época da imagem do mundo", Heidegger já descrevera o fenômeno da particularização das ciências na modernidade:
Cada ciência, enquanto pesquisa está erigida sobre o projeto de um delimitado âmbito de objeto e, por isso, é ciência particular. Cada ciência particular, no entanto, deve singularizar-se no desdobramento do projeto através de seu procedimento, em determinados campos de investigação. Essa singularização (especialista), no entanto, não é de modo algum apenas um fenômeno que acompanha a crescente impossibilidade de abranger os resultados da pesquisa. Ela não é um mal necessário, mas a contingência essencial necessária da ciência enquanto pesquisa. (1952, p. 77)
Heidegger diz que ela é conseqüência do empresamento, que somente assim pode ter sucesso nos institutos universitários, na visão dos administradores. Mas, na carta, o filósofo diz que a especialização, enquanto limite, surge da limitação que a ciência sofre em ter que aceitar o incontornável como o inacessível que é a diferença ontológica - "que já no ente é pensado e dito o ser". Aprender a guardar (proteger) essa diferença é o que preserva a ciência da total objetivação, o que somente resulta da destruição, desconstrução e superação da metafísica, que entificou o ser e assim encobriu a diferença, sobretudo na modernidade.
Por isso, mostrar os limites da objetificação - na especificação das ciências - significa, para Heidegger, "superação da metafísica moderna e isto significa, ao mesmo tempo, superação da metafísica ocidental. Superação, porém, significa aqui o questionar originário da pergunta pelo sentido, isto é, pelo âmbito do projeto e com isso, pela verdade do ser, questão que ao mesmo tempo, se desvela como a pergunta pelo ser da verdade" (ibidem, p. 92). Guardar o incontornável como o inacessível, somente pode tornar-se "a experiência da essencial limitação das ciências", através da superação da metafísica.
V
O segundo aspecto da questão mais filosófica da carta fala da essência da técnica:
No pano de fundo dessas considerações está o pensamento de que a essência da ciência moderna se fundamenta na essência da técnica, o fato de que a essência da técnica, entretanto, é uma, a figura fundamental do ser que agora impera no sentido da vontade da vontade.
Assim como a situação da ciência moderna era analisada no livro publicado na época da carta, assim também a essência da técnica é objeto de análise da época. Em 1949, Heidegger fez sua estréia pública, depois das peripécias de 15 anos de ostracismo, em Bremen, com um ciclo de conferências intitulado Lançar um olhar para dentro do que é (Heidegger 1994, pp. 5-77). As quatro conferências eram: "A coisa" (Das Ding), "O dispositivo" (Das Ge-Stell), "O perigo" (Die Gefahr) e "A viravolta" (Die Kehre). "O dispositivo" seria a base para a conferência que Heidegger iria pronunciar em Munique em 1953, ampliada e com o título "A pergunta pela técnica".
Todas essas iniciativas de Heidegger, a convite de amigos, faziam parte da estratégia de seu retorno à vida intelectual no pós-guerra. Vinham como fundo comum de suas intervenções, comentários em torno de questões do mundo, os descaminhos da ciência, o problema da técnica, os mal-entendidos da filosofia e sobretudo a questão do futuro. Todas as questões eram colocadas, de um lado, a partir da questão do ser, o esquecimento do ser, a entificação do ser e o encobrimento da diferença ontológica. Mas, do outro lado, em boa parte das manifestações da modernidade, ainda que ameaçadoras, Heidegger procurava manifestar a esperança de que, vencida esta etapa de obscurecimento, chegaria um novo tempo. Talvez a isso se deva acrescentar que Heidegger, ao diagnosticar o "tempo da imagem do mundo", a era da técnica e os perigos que nos ameaçam, descobria aí um princípio epocal determinante, provindo da metafísica e que, portanto, ainda que um modo de ocultamento do ser, fazia parte de sua manifestação. E, uma vez dado este diagnóstico metafísico, para além da metafísica, de superação da metafísica, o pensamento do ser ou da história do ser traria a redenção.
Quando Heidegger afirma na carta "a essência da ciência moderna se fundamenta na essência da técnica", ele exige um diagnóstico da essência da técnica e já mostra em que direção ele vai, "porque a essência da técnica é uma, a figura fundamental do ser que agora impera no sentido da vontade de vontade", ele anuncia o último princípio epocal, incorporado em Nietzsche como o último metafísico.
A técnica como a figura fundamental do ser, isto é, a técnica como o encobrimento do ser pelo modo como a técnica manifesta a vontade de vontade diante do mundo, das coisas e do homem. Heidegger permanece fiel a seu estilo de ver o positivo, o anúncio, o destino do ser, no encobrimento que é trazido pela técnica.
Assim como a presença na modernidade é o subiectum enquanto consciência, autoconsciência, ela, na técnica, é a presença do objeto para o sujeito, objeto que não apenas espera a objetificação, mas que provoca o ser humano como um fundo inesgotável de reserva a ser disposto como artefatos, máquinas, instrumentos.
Assim, a figura na qual impera o ser na era da técnica é o dispositivo (Ge-Stell). Por isso Heidegger diz: "O dispositivo é a essência da técnica [...] A essência da técnica é o dispositivo" (1994, p. 40).
É por isso que Heidegger torna a carta para Zeltner um documento do que já pensara nas suas obras de 1930 a 1945, e resumindo essas idéias em novos textos e conferências contemporâneas a ela.
As conferências de Bremen resumem a modernidade com sua ciência: a coisa não é mais pensada em seu acontecer. O dispositivo é o que converte sempre em objeto a coisa. Esse é o perigo como tal. É nele que é possível a viravolta.
Portanto, a essência da ciência reside na essência da técnica, a essência da técnica reside na essência do dispositivo, a essência do dispositivo é o perigo que se esconde no dispositivo, perigo e que assim não experimentamos como perigo e por isso não vivemos nossa indigência, isto é, "o ser humano não é ainda o mortal" (ibidem, p. 56). Para ser mortal (e não apenas alguém que termina), deve acontecer a viravolta (Kehre): "Quando o perigo é, enquanto o perigo, com a viravolta do esquecimento, acontece o mostrar-se do ser, acontece mundo" (ibidem, p. 73).
Quando a técnica, e por isso a ciência, converteu a coisa em objeto e assim em dispositivo, a coisa deixou de acontecer como mundo, e então a técnica se tornou nosso destino.
Heidegger diz na carta a Zeltner: "Existem sinais de que esta- mos, ainda vagarosamente, avançando na direção de uma viravolta [Kehre] desse destino do ser", que nos permitirá enfrentar a essência da técnica. E então admoesta: "Preparar para a viravolta é necessidade e tarefa do pensamento".
VI
O terceiro aspecto filosoficamente relevante na carta consiste na referência que o filósofo faz à conferência "Que é metafísica?" (Heidegger 1967, pp. 1-19). Nela ele criara o primeiro desconcerto no meio universitário, confrontando o exercício das ciências com a diferença ontológica. Vinte anos antes falara do nada como o ser.
As ciências se ocupam com seus objetos e nada mais.
Que nada é esse?
Novamente temos presente na carta o desejo de revisão, de ser bem compreendido, a estratégia constante para a recepção de sua obra. Mas mesmo aí está a orgulhosa provocação: "Do movimento e caminho do pensamento não se encontra nada".
Referências bibliográficas
Heidegger, Martin 1952: Holzwege. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.
______ 1953: Sein und Zeit. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.
______ 1967: Wegmarken. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.
______ 1994: Bremer und Freiburger Vorträge. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.
Heidegger, Martin/Arendt, Hanna 1998: Briefe. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.
Heidegger, Martin/Jaspers, Karl 1990: Briefwechsel. Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.
Safranski, Rüdiger 1997: Ein Meister aus Deutschland. Heidegger und seine Zeit. Frankfurt a/M, Fischer.